Dividir o mundo entre um "Norte decadente" e um "Sul emergente" foi um erro de diagnóstico da política externa brasileira recente
Um dos bons analistas de política externa da nova geração, Matias Spektor estava em um mau dia quando escreveu o artigo "O futuro em São Bernardo", publicado em sua coluna em 24 de julho.
No texto, ele diz ter ouvido vozes de renovação da política externa brasileira. Elas teriam vindo de uma conferência realizada pela Universidade Federal do ABC no contexto das comemorações dos dez anos do PT no poder.
Não estive na conferência nem tive acesso ao que ali foi discutido. Mas nada do que autor apresenta no artigo sustenta seu entusiasmo com o conclave petista.
Spektor começa com uma caricatura do debate atual sobre a política externa no Brasil. A discussão teria se transformado em um Fla-Flu entre os adoradores da política externa de Lula e os seus detratores tucanos (um retrato que não corresponde à realidade de um debate plural e mais qualificado de que ele próprio participa). E conclui com uma falácia: este é um confronto inútil, porque preso ao passado. Teria chegado a hora do pós-tudo. O futuro, porém, viria do campo hegemonizado pelo PT.
O argumento do articulista revela uma estranha concepção do que seja o passado: como é possível considerar página virada da história uma política externa em execução há dez anos, por um grupo político que ainda está no poder e se propõe, legitimamente, a nele permanecer? Já a sua noção do futuro é puramente enganosa: como construí-lo sem rever criticamente o passado, que aliás é presente?
A política externa dos dez últimos anos tem, a meu ver, dois grandes defeitos: um deles de diagnóstico, outro de execução. O primeiro foi dividir o mundo entre um "Norte decadente" e um "Sul emergente" e colocar nossos melhores ovos na cesta deste não raro em detrimento das nossas relações com aquele.
Apressadamente, associou-se a decadência do Norte ao suposto naufrágio do capitalismo liberal e a emergência do Sul à afirmação irreversível de modelos mais afinados com o capitalismo de Estado.
Mal comparando, uma espécie de "fim da história" às avessas, para lembrar o livro famoso de Francis Fukuyama. Nesse quadro mental, exagerou-se a perda relativa de poder dos Estados Unidos e superestimou-se, ingenuamente, a convergência de interesses entre o Brasil e o "Sul", China à frente.
Esse erro de diagnóstico esteve desde logo influenciado pelas preferências ideológicas dos formuladores e executores da política externa brasileira. As mesmas que os levaram a ter postura dúbia com regimes populistas autoritários, embora eleitos, na América Latina, para não mencionar governos brutais na África.
As falhas de execução derivaram da busca frequente pela projeção instantânea das imagens positivas do país e do presidente Lula, como se ambas se confundissem. Isso em prejuízo de uma avaliação mais realista dos meios e modos ao alcance do Brasil para intervir na cena internacional, a exemplo do malogrado acordo em torno do programa nuclear iraniano.
Outro equívoco consistiu em o presidente da República tomar partido em eleições em países vizinhos.
A construção do futuro da política externa brasileira passa necessariamente por uma revisão crítica profunda dos últimos dez anos. Não se trata de arremessá-los na lata de lixo da história, como se fossem pura herança maldita, pois não apenas eles fazem parte do acervo diplomático do Brasil como também produziram alguns resultados virtuosos.
Trata-se, isto sim, de tirar lições desse período da política externa e, para tanto, é preciso rever diagnósticos, questionar premissas ideológicas e reconhecer erros de execução. Não creio que o PT esteja em condições de fazê-lo, por mais que Spektor se esforce em ouvir as vozes de São Bernardo e pretenda interpretá-las como presságios de uma boa nova.
Sergio Fausto, 50, cientista político, é superintendente executivo da Fundação iFHC
Fonte: Folha de S. Paulo
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