- O Globo
Políticos não querem aperfeiçoar o combate à corrupção. A ficha parece que está caindo, depois de uma madrugada insana em que deputados tramaram o constrangimento da atuação da Justiça como se estivessem aprovando medidas contra a corrupção. Um acintoso golpe parlamentar de retaliação, uma autoproteção inaceitável.
Medidas que supostamente combateriam o abuso de poder dos membros de Judiciário e Ministério Público na verdade buscam cercear a atividade da Justiça, igualzinho ouvimos nas gravações clandestinas entre políticos que falavam em “estancar a sangria” provocada pelas delações da Lava-Jato.
Os senadores recusaram ontem à noite um golpe regimental orquestrado pelo (ainda) presidente do Senado, Renan Calheiros, para aprovar um requerimento de urgência para a votação das medidas aprovadas na madrugada anterior na Câmara. Por que tanta pressa?
Não é coincidência que para hoje esteja marcado o julgamento em plenário do STF de processo contra Renan, que poderá transformá-lo em réu. Neste caso, ele estará sujeito a ter que deixar a presidência da Casa antes do fim de seu mandato, dependendo apenas que o ministro Dias Toffoli libere o processo, que já tem maioria de votos favoráveis a que o político na linha de substituição do presidente da República não pode ser réu.
A crise institucional deflagrada pela aprovação por deputados de medidas punitivas contra juízes e procuradores pode ter desdobramentos políticos graves se o Senado não sustar o espírito de retaliação que prevaleceu na Câmara. A decisão dos procuradores de Curitiba de renunciar coletivamente à Lava-Jato se o projeto for aprovado pelo Senado e sancionado pelo presidente Michel Temer é uma arma de pressão política válida, mesmo porque o presidente da República é parte integrante do processo legislativo, não sendo obrigado a seguir a decisão do Congresso. Portanto, pode ser pressionado politicamente, como qualquer outro agente desse processo.
Os procuradores, ou mesmo o juiz Sérgio Moro, podem desistir da Lava-Jato, mas cada um terá de conviver com a nova legislação, se ela prevalecer ao final do embate que apenas se inicia. E a investigação sobre a LavaJato prosseguirá em outros níveis. Alguns, como, especula-se, é o caso de Moro. Podem até mesmo escolher um ano sabático no exterior para estudar, mas outros ficarão por aqui se essa decisão da Câmara for aprovada pelo Senado e sancionada por Temer e, ao fim, for mantida pelo Supremo, o que é altamente improvável.
A desfiguração das dez medidas contra a corrupção, apresentadas pelos procuradores de Curitiba através de projeto popular, não seria um obstáculo intransponível às investigações, apenas representaria o desperdício de uma oportunidade para aperfeiçoar nossa legislação. Algumas propostas, no entanto, não deveriam mesmo ser aprovadas, ou mereciam melhor análise, como a validação da prova ilícita, o fim do habeas corpus, o polêmico “reportante do bem”, o teste de integridade. Outros temas retirados do texto seriam necessários ao aperfeiçoamento do combate à corrupção, como a criminalização do enriquecimento ilícito de funcionários públicos (como não aceitar?), o aumento do prazo de prescrição dos crimes, o acordo penal, e regras mais rígidas para a celebração de acordo leniência.
Nada disso, porém, inviabiliza as investigações, apenas demonstra que nossos políticos não querem aperfeiçoar o combate à corrupção. Mas incluir na nova legislação punição por “abuso de autoridade” a juízes e promotores é um abuso de autoridade do Legislativo.
Propositalmente vagas e amplas, as definições de condutas passíveis de punição levaria a que, no limite, réus pudessem abrir processos criminais contra seus julgadores ou acusadores, no caso do MP, subvertendo completamente o sistema judicial. É o que tentam, por exemplo, os advogados do ex-presidente Lula, sem consequências práticas. Os magistrados são submetidos a sistema de responsabilização administrativa pela Lei Orgânica da Magistratura e pelo Conselho Nacional de Justiça, assim como o MP tem seus próprios regulamentos. Estão sujeitos a condutas penais, como qualquer cidadão.
Provavelmente estão sendo vítimas da própria leniência com que se julgam, basta ver que a medida administrativa mais rigorosa a que estão submetidos é a aposentadoria compulsória, com vencimentos integrais. Há também a sensação de que o corporativismo os torna intocáveis em processos penais. Nada disso, porém, justifica esse ataque ao funcionamento da democracia. Parlamentares, que na sua grande parte responde a processos os mais diversos, parecem viver em outra dimensão, e apenas “a voz rouca das ruas”, como dizia Ulysses Guimarães, os obrigará a voltar à realidade.
Não aquela arruaça que vimos em Brasília na terça-feira, com mascarados e baderneiros defendendo seus interesses corporativos, mas a verdadeira expressão autônoma da cidadania exprimindo sua repulsa à velha política que tenta se manter no poder.
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