- O Globo
Na família, no trabalho, sobretudo nas redes sociais, parece que as pessoas nunca estiveram tão divididas
Vivemos, não é novidade, tempos polarizados. Na família, no trabalho, sobretudo nas redes sociais, parece que as pessoas nunca estiveram tão divididas. Mas sempre existiu dúvida sobre o alcance disso quando se trata de consumo: será que as divisões ideológicas afetam como gastamos nosso dinheiro?
Nailya Ordabayeva (Boston College) e Daniel Fernandes (Universidade Católica de Portugal) tinham a mesma dúvida. O estudo de ambos, publicado no prestigiado Journal of Consumer Research, é o mais completo até agora sobre como a ideologia contribui para a escolha — ou a rejeição — de certos produtos e marcas, mesmo quando não estamos pensando nisso.
Quando você faz uma compra, em geral não está apenas satisfazendo uma necessidade, também está fazendo uma declaração. Isso vale para o carro na garagem, o destino nas férias, as roupas ou o drinque favorito. Tudo isso é uma forma de se afirmar. Mas afirmar o quê? Não só a autoestima, mas, em grande parte, a ideologia política, dizem os dois pesquisadores.
Ideologia, para efeito do trabalho, se divide entre ser conservador, mais ligado às ideias do Partido Republicano, ou liberal, ligado ao Partido Democrata — as linhas que dividem a política americana. São grupos com opiniões totalmente diferentes sobre temas como gastos públicos, aborto, casamento gay, pena de morte, drogas, posse de armas etc. Os conservadores concordavam com uma sociedade de ricos e pobres, na qual cada pessoa recebe pelo qual se esforçou. Progressistas se preocupavam mais em expressar a própria individualidade, mas também defendiam uma sociedade mais igualitária. Os autores montaram experimentos para ver se isso tinha efeito nos gastos.
Eles começaram com um teste simples: 169 universitários, depois de declarar sua ideologia, escolheram entre duas canecas. “Apenas melhor” estava escrito numa delas. Na outra, “Apenas diferente”.
Os conservadores tenderam a escolher a primeira, enquanto os liberais ficaram com a segunda. O primeiro resultado sugeriu que os conservadores buscam mais a qualidade, e os mais progressistas, se destacar. Mas aconteceria o mesmo com relação a marcas?
Um segundo experimento, com 333 voluntários, usou duas marcas, a Ralph Lauren, associada ao luxo, e a Urban Outfitters, mais descontraída. Os participantes concorreram a um vale-presente de US$ 100 de uma das lojas. Eles só tinham de dizer qual preferiam.
Entre a maioria dos conservadores, a escolha foi Ralph Lauren. Já os liberais optaram pela Urban Outfitters. Isso ocorria não importava a idade ou a renda. Outros 272 voluntários repetiram o teste, mas, além de declarar a ideologia, metade deles leu uma mensagem que ressaltava a importância do trabalho para o sucesso. Os demais leram sobre como acaso, oportunidade e ajuda dos outros são fundamentais para o sucesso de alguém.
Nos dois cenários, conservadores continuaram optando pela Ralph Lauren, mas, quando liam que o sucesso pode acontecer por acidente, a escolha era menos convicta, de 40%. Quando influenciados pela mensagem do esforço pessoal, a preferência superou os 63%. Entre os liberais, em ambas as opções, a escolha praticamente não se alterou.
Esse não é o único trabalho a relacionar escolhas políticas e consumo. Em artigo publicado pelo Psychological Science Journal, os economistas Romana Khan, Kanishka Mira e Vishal Sing demonstram que pessoas que se definem politicamente como conservadoras são mais apegadas às principais marcas, e as que se dizem liberais, mais abertas a experimentar.
Eles cruzaram registros de compras com dados demográficos e da presença de igrejas. Os resultados sugerem que um mercado que combina conservadorismo e presença religiosa é um desafio para novos produtos. Nesses lugares, as pessoas demoravam mais a aderir, e as vendas ficavam entre 37% e 63% abaixo do esperado. Isso, segundo os autores, se encaixa em alguns traços comportamentais geralmente associados ao conservadorismo, como mais aversão ao risco, ceticismo com novas experiências e uma preferência pelo status quo.
É importante dizer que essas escolhas quase nunca são conscientes. Nosso dia a dia é repleto de pequenos gestos, quase automáticos. E as pesquisas não são definitivas e devem ser ampliadas. Somos todos, afinal, indivíduos. Mas são evidências de que, como tudo, o consumo também anda polarizado.
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