Saga da Odebrecht revela os erros do capitalismo nacional
A ascensão da Odebrecht como grande império empresarial ao longo das últimas décadas pode ser medida em termos de faturamento, número de empregados ou de obras espalhadas pelo mundo. Mas existem métricas que revelam mais sobre as estratégias que fizeram da companhia um ícone do capitalismo brasileiro - ou do pior dele.
Em
“A Organização: A Odebrecht e o esquema de corrupção que chocou o mundo”, a
jornalista Malu Gaspar conta que, no início dos anos 1970, as reuniões de
planejamento anual da construtora baiana eram realizadas em finais de semana,
na sua própria sede em Salvador. À medida que galgava posições no ranking das
maiores empreiteiras do país, os eventos foram sendo transferidos para hotéis,
como o Deville, na praia de Itapuã, e o Fiesta Bahia, no Farol da Barra.
No
auge, os encontros eram realizados no complexo hoteleiro de Costa do Sauípe,
construído pela empresa, com a presença dos familiares de executivos e
funcionários, embalados por shows de axé music e até a presença do técnico da
seleção brasileira de futebol, convidado para orientar uma pelada.
Não
haveria problema algum em celebrar êxitos corporativos com festas grandiosas, a
não ser pela forma como esse sucesso era obtido. “O que funciona está certo”,
pregava o patriarca Norberto Odebrecht em seus livros de autoajuda que serviam
como código de ética (!?) do conglomerado.
Anos
depois, o filho Emílio esbanjava otimismo com os lances estratégicos de
expansão do grupo, repetindo o mantra “mais coragem do que análise”. Já o neto
Marcelo assim resumiu a sua trajetória, que é a do grupo como um todo: “Vocês
sabem por que fui tão longe? Porque pensei que o sistema era blindado”.
Logo
no início do livro, a autora apresenta listagem de dezenas de familiares,
executivos e operadores para facilitar a vida dos leitores menos acostumados ao
organograma da empresa, à semelhança dos resumos que ajudam a entender grandes
sagas da literatura mundial, como “Cem Anos de Solidão”, de Gabriel García
Márquez, ou o “Senhor dos Anéis”, de J.R.R. Tolkien.
Já
nos primeiros capítulos, porém, percebe-se que um outro guia seria necessário
para dar conta da sucessão de políticos dos mais diferentes partidos, de uma
infinidade de empreendimentos públicos superfaturados e das respectivas
porcentagens e comissões, pagas a título de “ajuda” ou “apoio” - afinal de
contas, “propina” é um termo que não existia no léxico odebrechtiano.
Na
cartilha da Organização, a satisfação do cliente estava acima de tudo - mas
nesse caso não se tratava de cumprir os objetivos de melhor qualidade e menor
preço exigido pelas contratações públicas. Segundo sua lógica negocial,
“cliente” eram os políticos e dirigentes de estatais, que deveriam ser
agradados de modo contínuo, com presentes, contribuições de campanha e malas de
dinheiro. “Nossa disposição em ouvir, atender e resolver as questões dos nossos
interlocutores fatalmente se transformará, quando necessário, em disposição
deles para entender e considerar nossas questões”, ensinava o poderoso Emílio.
Enquanto
nos envolvemos com a trama empresarial e familiar, mal nos damos conta de que
vamos passando de escândalo em escândalo da história brasileira, das negociadas
nas obras faraônicas do regime militar à licitação forjada da ferrovia
Norte-Sul de Sarney, passando pelos casos de PC Farias e dos Anões do Orçamento
e até chegarmos à interconexão entre o Petrolão petista e o Trensalão tucano.
Ainda
na década de 1980, seus executivos chegaram à conclusão de que, para ficar
imune à instabilidade política e econômica do país, a companhia deveria se
internacionalizar. Tentaram entrar no mercado americano, na Europa e nos
Emirados Árabes. Segundo um alto funcionário da empresa, nesses locais pouco
importa para o governo a sua nacionalidade, o que conta é se você executa bem
as obras e por um preço baixo. “Sempre que nos aventuramos por locais assim,
deu errado. O que funcionava era apostar em países onde o fato de ser
brasileiro fazia diferença”.
A
Odebrecht voltou-se então para a América Latina e países africanos como Angola,
onde as “parcerias público-privadas” se davam nos mesmos moldes daqui: por meio
de fechamento de mercado contra a concorrência internacional, contratos de
exclusividade com estatais e linhas de crédito subsidiadas em bancos públicos,
além de editais de licitações manipulados, cartéis com pretensos concorrentes e
benefícios fiscais.
Embora
a Odebrecht tenha elevado ao grau máximo de sofisticação a engenharia
financeira para gerar bilhões de dólares em caixa dois e distribuí-los a
autoridades, o mais grave é constatar que a companhia está longe de ser um caso
isolado ao longo de nosso processo de (sub)desenvolvimento econômico. Parte
considerável das grandes empresas brasileiras só se mantém graças ao mesmo
ambiente institucional que propiciou ao grupo baiano se tornar um dos maiores
da América Latina.
Enquanto
isso, milhares de empreendedores com bons projetos não conseguem fazer seus
negócios prosperarem devido ao reverso da medalha. A corrupção exposta no livro
choca pelos valores astronômicos repassados a partidos e candidatos. O prejuízo
social, contudo, vai muito além dos desvios - envolve a carga tributária
elevada e complexa para compensar as perdas fiscais com incentivos e subsídios,
a infraestrutura deficiente gerada por projetos malfeitos e um sufocante
emaranhado regulatório criado para se vender facilidades.
A
Lava Jato colocou empresários e políticos poderosos na cadeia, o país elegeu um
presidente que prometia mudar tudo, mas praticamente nada foi feito para se
evitar que novas ou velhas empresas, com os mesmos ou outros métodos, venham a
capturar a política em benefício próprio.
Como
diria Regina Bahia Odebrecht, em mensagem para o filho preso que insistia em
brigar com o pai: “O tempo sem uma equação é contra todos nós”. Sem encarar de
frente esses problemas, não tardarão a surgir novos escândalos. Tic-tac,
tic-tac, tic-tac.
*Bruno Carazza é mestre em economia, doutor em direito e autor de “Dinheiro, Eleições e Poder: as engrenagens do sistema político brasileiro”.
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