sábado, 31 de dezembro de 2022

Carlos Alberto Sardenberg - Eu vi o Rei

O Globo

Os que jogavam a seu lado ou contra ele também sabiam que ali estava o melhor de todos, capaz de jogadas impossíveis para os mortais

Vi Pelé jogar. E concordo com Nélson Rodrigues. Pelé sabia que era o Rei. Mais: os que jogavam a seu lado ou contra ele também sabiam que ali estava o melhor de todos, capaz de jogadas impossíveis para os mortais. Mais ainda: a torcida sabia. Todas as torcidas. No estádio, era um espetáculo. Quando Pelé dominava a bola no meio-campo e virava o corpo na direção do gol adversário, as pessoas se levantavam na expectativa.

Reparem: Pelé estava a meio campo do gol, vários adversários à frente, e a torcida já de pé. Quando ele partia em velocidade, as pessoas já estavam comemorando. Mesmo que não saísse o gol, a gente podia dizer: eu vi.

Meu gol preferido é da Copa de 1958, contra o País de Gales. Pelas circunstâncias. Zero a zero, jogo eliminatório, segundo tempo. Pelé está dentro da área, de costas para o gol. Pede a bola. Recebe no peito, deixa cair, um toquezinho sobre as pernas do marcador e coloca no canto.

Ele faria outros gols espetaculares e decisivos. Mas a gente já sabia que era o Pelé. Em 1958, era um rapaz de 17 anos que se apresentava ao mundo. E todos entenderam, era muito mais que um gol de Copa. Ou se poderia dizer: vocês ainda não viram nada.

Governo Lula

Voltando à nossa seara, vamos dar por entendido que o governo Lula terá dificuldades com:

1. cenário externo desfavorável, num mundo com inflação elevada, juros altos e desaceleração da atividade econômica;

2. cenário interno complicado nos mesmos itens, inflação, juros, desaceleração;

3. formação de maiorias na Câmara e no Senado.

Não é pouca coisa, mas cabe acrescentar uma dificuldade menos comentada: a administração interna do governo. Burocracia, gestão — não é assunto tão interessante, mas crucial.

Um ministério tem secretarias, coordenadorias e departamentos. Como acomodá-las nos 37 ministérios, sobretudo depois do vendaval de incompetência e má-fé do governo Bolsonaro?

Fernando Haddad e Simone Tebet têm óbvias diferenças no pensamento econômico. Daí deriva uma questão prática: como se entenderão na gestão do Orçamento?

Com base em formatos já aplicados em diversos governos, o Ministério do Planejamento tem a Secretaria de Orçamento, que prepara o projeto de Orçamento enviado ao Congresso e, depois de aprovado, acompanha sua realização. A Fazenda tem a Secretaria do Tesouro, o caixa do governo, que faz os pagamentos aos ministérios, que gastam nos programas e obras. Se um ministro quer liberar uma verba, passa primeiro no balcão do Planejamento, onde apanha a autorização, depois na Fazenda, para receber o dinheiro.

Por trás do roteiro burocrático, está a escolha de prioridades: gastar mais em pessoal ou em obras? O que vem na frente, os recursos da Funai ou da Sudam? Isso é economia e política — ministros fortes politicamente sempre arranjam mais dinheiro. Se foi difícil para Lula dividir o ministério, como ele disse, será ainda mais complicado arbitrar as demandas dos ministros e da ampla coalizão.

Sim, Lula já fez isso, mas as circunstâncias mudaram. A questão principal neste início de governo será arranjar a burocracia: onde fica esta ou aquela secretaria? Em qual prédio? Com que recursos (assessores ou cargos comissionados)? Pode parecer coisa pequena, mas sem essa organização o governo simplesmente não anda. Além dos grandes arranjos, a nova administração pode encalhar em disputas burocráticas.

Para continuar no tema da política econômica: sempre que houve a divisão entre Fazenda e Planejamento, a primeira foi dominante. Não se gasta um centavo sem passar pela poderosa Secretaria do Tesouro. Isso significa que Simone Tebet terá de arranjar funções e poderes em áreas não relativas à política econômica. Gestão das estatais costumava ser uma função do Planejamento. Mas a ministra terá autoridade sobre uma Petrobras, gigante dirigida por um petista?

Lula foi praticamente obrigado a montar um governo amplo e diverso. Conseguiu. Agora começa a parte mais trabalhosa: colocar a geringonça para funcionar.

 

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