domingo, 16 de julho de 2023

Míriam Leitão - A diferença que os valores fazem

O Globo

Tudo o que temos celebrado no Prêmio Faz Diferença esteve sob ataque. Por isso, a festa deste ano teve uma alegria calma e sensação de alívio

O líder indígena Ailton Krenak entrou no salão do Copacabana Palace, quando ainda estava quase vazio. Abriu um sorriso ao ver Milton Nascimento. Sentou-se do lado dele, e os dois encostaram suas cabeças uma na outra e cantaram baixinho uma música de “Txai”, o álbum de Milton dedicado aos indígenas. Ao fim da cerimônia, duas jovens foram dizer a Ailton o quanto o admiravam. Eram as filhas da cientista Mercedes Bustamante. Krenak me disse baixinho. “A geração Greta entendeu”.

É privilégio ver cenas assim dos bastidores do prêmio que há vinte anos este jornal entrega a pessoas e instituições que, por uma luta, uma superação, uma história de vida, uma causa, melhoram o país. Nós, jornalistas, somos céticos por dever de ofício. Temos que duvidar para começar a entender qualquer matéria. O prêmio Faz Diferença é um saudável exercício de buscar, em cada editoria, o que deu certo, o que é bom, generoso, transformador.

O Brasil passou por muitos solavancos nas duas décadas em que o prêmio existe. Nos últimos quatro anos, foi exposto à exibição grotesca de antivalores. Falas diárias de pessoas em posição de poder subestimaram a ciência, a educação, os indígenas, os negros, as mulheres, a floresta, a democracia. Tudo o que temos celebrado esteve sob ataque. O ano de 2022 representou a esperança de estancar essa demolição. A festa tinha, portanto, uma alegria calma, uma sensação de alívio.

As enfermeiras do Hospital Heloneida Studart chegaram lá com orgulho. “Nós o paramos”, disse Maria Aparecida de Jesus se referindo ao médico abusador de pacientes. Os Skank fizeram uma bela turnê de despedida. A publicitária Luciana Capobianco ajuda refugiados. A atriz Isabel Teixeira lembrou que o protagonista da novela premiada era um bioma brasileiro, o Pantanal. O uso eficiente da tecnologia na educação é bandeira de Vilma Guimarães. A Flip espalhou, para além de Paraty, a alegria das festas literárias. O grupo Soma, de moda, também investe nas periferias. O jovem Daniel Dreifuss foi fazer cinema em todos os fronts. As histórias boas eram levadas ao palco sempre ao som de alguma música do Milton. Mercedes Bustamante e sua defesa do Cerrado. Edmar Bacha, combatente da estabilidade econômica, representou os economistas do Real que levantaram a voz na defesa da democracia. Não foram, mas enviaram mensagens a cantora Linn da Quebrada e a skatista Rayssa Leal, que cresce sobre rodas, avisando que as meninas podem tudo. Luiza Brunet foi lá fortalecer as mulheres que enfrentam agressores. Ailton Krenak celebrou a festa em si, “depois de tanto luto”. Milton lembrou Guimarães Rosa, mineiro como Ailton, como Skank, como Bacha, ao dizer que o importante na vida é a travessia.

Lembrei, no roteiro, que Milton foi guia em tantas travessias que temos feito no Brasil. Contra a ditadura, no entendimento da força da mulher, no respeito aos indígenas, na luta contra o racismo, no trem das nossas vidas. Sobretudo, na busca das raízes da nossa música.

Ailton Krenak, pessoa do meu vale do rio Doce, é também filósofo. No seu livro, “Futuro ancestral”, ele fala dos rios. E do seu Watu. Sua visão não é amarga e é sempre capaz de iluminar novos ângulos da realidade. “Quando penso no Watu, percebo sua potência: um curso d’água de superfície que, ao sofrer uma agressão teve a capacidade de mergulhar na terra em busca dos lençóis freáticos profundos e refazer sua trajetória. Assim ele nos ensina a evitar um dano maior”, escreveu. A mensagem é que, depois das dores, é preciso mergulhar na terra para se reconstruir.

O correr da vida embrulha tudo, dizia Guimarães Rosa. Eu apresentava o prêmio lembrando os que subiram naquele palco, em vinte anos. Zilda Arns, José Mindlin, Zé Celso Martinez Corrêa, Gal, Jô, Bibi Ferreira, tanta gente linda. Então aconteceu o que eu não esperava. O diretor de redação Alan Gripp pediu para falar no meio da cerimônia e fez uma homenagem surpresa a Ancelmo Gois e a mim, apresentadores do prêmio desde o primeiro. Eu o ouvia falando e nem entendia. Vi a plateia aplaudir, recebi o abraço carinhoso de Flávia Oliveira, peguei o troféu, mas não entendia.

Quando voltava para casa, em silêncio, no fim dessa noite de emoção, quis contar o acontecido à jovem que um dia fui. Se fosse possível essa volta no tempo eu diria àquela jovem que a democracia é valor da vida toda e, sim, é uma luta que vale a pena lutar.

 

Um comentário:

ADEMAR AMANCIO disse...

Excelente artigo da colunista.