A maior mudança na economia desde o Plano Real
O Globo
Reforma tributária inaugura período de
trabalho intenso para eliminar o caos brasileiro nos impostos
Não seria exagero afirmar que a reforma
tributária aprovada na última sexta-feira representa uma transformação na
economia brasileira comparável à do Plano Real. Não apenas pela simplificação e
racionalização dos impostos sobre serviços e consumo. Mas, acima de tudo, pelo
fim da cobrança cumulativa, que faz do Brasil o país com o “pior sistema de
tributação” do mundo, nas palavras certeiras da tributarista portuguesa Rita de
la Feria, da Universidade de Leeds, em entrevista ao GLOBO.
Levará algum tempo para o novo sistema entrar em vigor plenamente — o prazo para substituição completa dos cinco impostos vigentes pelos dois criados pela reforma é de dez anos —, mas rapidamente o brasileiro se dará conta da diferença dele para o velho. Hoje nem o governo tem noção de quanto o consumidor paga de imposto em cada produto ou serviço, tantas são as categorias, exceções e regimes estaduais e municipais distintos. Com a adoção do modelo consagrado internacionalmente — o imposto sobre valor adicionado —, toda a tributação ficará explícita. O fim da cobrança cumulativa e sua transferência para o local de consumo trarão um grau de racionalidade e transparência que o Brasil desconhece.
Toda empresa poderá descontar do total que
tem a pagar aquilo que já foi pago por outros ao longo da cadeia produtiva.
Isso transformará por completo o ambiente de negócios, tornando o país mais
seguro para investimentos e mais competitivo. “Há muitas empresas que têm
interesse no mercado brasileiro, que já estão no Brasil ou querem investir no
Brasil. Muitas delas tiveram uma experiência de fazer negócios no Brasil e ver
o horror que é o vosso sistema tributário”, diz De la Feria. Em dez anos, o
panorama será outro. Qualquer investidor saberá enxergar isso na hora de
escolher onde apostar seu dinheiro.
A reforma aprovada, obviamente, não foi a
ideal. As exceções e regimes especiais mantidos se encarregarão de tornar a
alíquota necessária para sustentar o Estado brasileiro mais alta que a
congênere noutros países. A aprovação das leis complementares necessárias para
pô-la em marcha precisará ser acompanhada de perto para garantir que novas
brechas não sejam abertas em deferência a grupos de interesses especiais e em
detrimento da maioria. Foi o que aconteceu na Índia, país que implementou
reforma semelhante e tem um sistema federativo comparável ao brasileiro. Ainda
assim, os efeitos da reforma lá foram positivos, e hoje a economia indiana se
tornou destaque em crescimento e polo de investimentos.
A emenda constitucional aprovada no Congresso
é resultado do trabalho de várias mãos ao longo de pelo menos três governos. É
preciso reconhecer, ao longo deste ano, o esforço do ministro da Fazenda, Fernando
Haddad, e de seu secretário Bernard Appy, mentor da reforma, além da
diligência do Congresso para aprovar medida tão relevante.
Em todas as avaliações internacionais, o caos
tributário brasileiro é motivo de piada. Somos o país do mundo em que se gasta
mais tempo e energia apenas para calcular quanto é preciso pagar, aquele em que
há mais regras e em que elas são menos estáveis, aquele em que a opacidade da
tributação oculta do cidadão o custo real de um Estado ineficiente e
perdulário. A reforma tributária não acabará com essa realidade do dia para a
noite, mas é inegável que se trata de um passo decisivo para colocar a economia
no rumo certo.
Obesidade infantil exige políticas de
incentivo à alimentação saudável
O Globo
Incidência de sobrepeso entre crianças no
Brasil chega ao triplo da média global, revela estudo
A obesidade entre
crianças e adolescentes se torna a cada dia mais preocupante. Um a cada três
brasileiros de 10 a 18 anos tinha excesso de peso em 2022, revelou levantamento
do Observatório de Saúde na Infância, da Fiocruz, com base em dados do
Ministério da Saúde (entre crianças de até 5 anos, uma em cada dez). Entre 2019
e 2021, as crianças com excesso de peso aumentaram 6,1% e os adolescentes
17,2%. A alta é atribuída aos longos e tenebrosos períodos de isolamento social
e às mudanças na rotina, com redução nos exercícios físicos. Depois os números
caíram, mas permanecem altos. A parcela de crianças com sobrepeso ou obesidade
(14,2%) é quase o triplo da média global (5,6%). A de adolescentes (31,2%),
quase o dobro (18,2%).
Embora o excesso de peso, especialmente na
infância, possa estar ligado a influências familiares, não é questão
exclusivamente privada, em razão dos efeitos na saúde pública. Cedo ou tarde
ele desaguará nos ambulatórios e enfermarias do SUS, na forma de doenças que
poderiam ter sido tratadas ou controladas por meio de alimentação mais
saudável. Por isso o Estado não pode se omitir na formulação de políticas para
melhorar os hábitos alimentares da população e para estimular a prática de
exercício físico.
Há boas iniciativas em curso, mas ainda em
pequena escala. Uma delas é a nova rotulagem dos alimentos ultraprocessados. Em
outubro do ano passado, entraram em vigor as novas normas para rótulos de
alimentos e bebidas no país. Fabricantes têm de informar de forma legível na
embalagem se o produto contém alto teor de açúcar, sódio ou gordura saturada. A
escolha sempre caberá ao consumidor, mas ele decidirá com base em informações
claras, que não ficam ocultas sob letras miúdas. Pena que as regras — similares
às que vigoram noutros países — ainda alcancem por aqui poucos produtos, pois
têm sido implantadas gradualmente.
Outra iniciativa importante são as leis que
restringem oferta e venda de alimentos processados em estabelecimentos públicos
e privados de ensino. A medida é adotada em alguns estados e cidades do país.
No município do Rio, os ultraprocessados foram banidos em julho, depois de
discussões na Câmara em que prevaleceu o bom senso. A ideia não sensibilizou o
estado, e a Assembleia Legislativa do Rio rejeitou proposta semelhante. A
escola é o ambiente ideal para conscientizar as crianças sobre a importância de
uma alimentação menos nociva e para criar o hábito da prática esportiva.
Não é fácil mudar hábitos, principalmente
quando o consumidor tem à disposição uma oferta abundante de guloseimas.
Alimentos com alto teor de açúcar, sódio e gordura saturada ocupam posições
estratégicas nas gôndolas dos supermercados. Muitas vezes, custam menos que os
alimentos naturais. O Estado, a quem caberá o custo da má alimentação no longo
prazo, precisa criar políticas públicas para incentivar os hábitos saudáveis e
dar aos cidadãos as informações necessárias para que ele possa fazer suas
escolhas.
Trilha aberta
Folha de S. Paulo
Reforma dos tributos, mesmo imperfeita,
aponta caminho para uma transformação
Com a
aprovação definitiva da emenda constitucional da reforma tributária,
o Congresso Nacional abriu caminho para o que pode vir a ser a maior
transformação da economia brasileira desde que o Plano Real controlou a
inflação há quase três décadas.
Ainda que imperfeito, o texto votado na noite
de sexta-feira (15) deixa para trás um sistema de impostos e contribuições
instituído sob a ditadura militar nos anos 1960, que se tornou crescentemente
obsoleto e caótico, gerador de ineficiência empresarial, insegurança jurídica e
conflitos federativos.
A reforma só foi possível por ter se
convertido numa agenda de Estado, superando os principais impasses partidários,
setoriais e regionais ao longo de debates amadurecidos desde a
redemocratização.
Trata-se de obra suprapartidária, embora se
deva elogiar o empenho da equipe econômica do governo Luiz Inácio Lula da Silva
(PT) nas negociações, além do entendimento entre os líderes da Câmara dos
Deputados e do Senado.
O foco da emenda constitucional é a taxação
de mercadorias e serviços, que, se continuará entre as mais elevadas do mundo,
ao menos ficará mais simples e racional —o que não é pouco.
Hoje há nada menos que cinco tributos
incidentes sobre o consumo nas três instâncias de governo, cada qual com suas
regras, exceções e alíquotas locais. Gradualmente, eles serão substituídos por
dois tributos similares sobre valor agregado, um gerido pela União e outro
pelos governos regionais, e um imposto seletivo para bens nocivos à saúde e ao
meio ambiente.
A legislação será nacionalmente unificada, e
variações só poderão ocorrer nas alíquotas locais. A transição para o novo
regime estará completa apenas em 2033, mas as decisões empresariais desde já
levarão em conta a mudança.
Há no entanto defeitos consideráveis no texto
e riscos de paralisia e retrocesso na próxima etapa de regulamentação
infraconstitucional. De pior, foram muitos os setores beneficiados com
descontos em relação à alíquota padrão.
Lobbies poderosos, de profissionais liberais
à Zona Franca de Manaus, entre outros, mantiveram
exceções, distorções e privilégios que forçarão um gravame,
sobre a maioria dos contribuintes, capaz de superar o patamar de 27% e ser o
mais elevado do planeta.
Na votação final, os deputados corretamente
reduziram parte das benesses. As pressões, no entanto, continuarão na
tramitação da lei complementar necessária para que a reforma entre em vigor.
Tudo considerado, as vantagens
potenciais da reforma compensam com folga as dúvidas que ela
suscita. Há muito a mudar para que o sistema tributário brasileiro seja mais
justo e progressivo, mas cumpre avançar na trilha ora aberta.
Ministério é público
Folha de S. Paulo
CNMP provoca retrocesso ao dificultar
pesquisas sobre salários de promotores
Criado há quase 20 anos no bojo da Reforma do
Judiciário, o Conselho Nacional do Ministério Público (CNMP) jamais se postou à
altura de sua missão constitucional, mas nem por isso se deve menosprezar o
impacto negativo de recente resolução aprovada pelo órgão.
De acordo com decisão de 28 de novembro,
cidadãos que queiram consultar na internet o salário de procuradores e
promotores serão
obrigados a se identificar antes de prosseguir com a pesquisa.
A medida levanta evidente empecilho à
transparência e cria um possível constrangimento a quem buscar informações
sobre a remuneração de membros do Ministério Público —que, assim como os do
Judiciário, com frequência desfrutam de pagamentos superiores ao admitido pelo
teto constitucional.
A diferença é que o Conselho Nacional de
Justiça, ainda que nem sempre livre de equívocos, empenha-se em aperfeiçoar a
fiscalização administrativa e disciplinar do Judiciário, conferindo
a mecanismos de transparência a atenção que merecem num sistema republicano de
prestação de contas.
Com o CNMP, que deveria fazer o mesmo pelo
Ministério Público, dá-se situação diversa. O órgão prima mais pelo
corporativismo do que pelo interesse da sociedade; oportunidades de avanço
institucional, como a Lei de Acesso à Informação, são ignoradas tanto quanto
possível, mas chances de retrocesso são abraçadas com presteza.
Foi esse o caso da sugestão da Associação
Nacional dos Procuradores da República (ANPR) para a criação de obstáculo às
pesquisas salariais. A medida agride, de uma vez, a Lei de Acesso, a Lei Geral
de Proteção de Dados e a Lei do Governo Digital, mas terminou acatada por
unanimidade no CNMP.
Para piorar, Paulo Gonet, aprovado no Senado
para o cargo de procurador-geral da República, portanto o próximo presidente do
conselho, indicou que, entre o princípio constitucional da publicidade
administrativa e o espírito de corpo, fica com o segundo.
Consterna tal atitude, dado que compete ao
Ministério Público nada menos que defender a ordem jurídica e fiscalizar o
cumprimento da lei, em nome da coletividade.
Ao tomar posse nesta segunda (18), Gonet poderá demonstrar se sua resposta na sabatina foi um mero deslize de palavras ou se de fato considera que sociedade e Constituição estão em segundo plano.
Reforma tributária, um feito histórico
O Estado de S. Paulo
Comparável ao Real e ao controle da inflação, a aprovação da reforma tributária trará ganhos estruturais capazes de levar País a nova etapa de desenvolvimento e crescimento econômico
O País conseguiu vencer os obstáculos que
travavam a reforma tributária nesta semana. Foram mais de 35 anos até que o
Legislativo desse aval a uma proposta que havia se tornado um folclore no
noticiário nacional, um feito e tanto e uma vitória a ser muito celebrada por
toda a sociedade.
O texto havia recebido apoio da maioria da
Câmara em julho, na primeira etapa de tramitação. Em novembro, os senadores
deram 53 votos a favor e 24 contra, mas modificaram trechos da reforma e
devolveram a proposta para uma última apreciação dos deputados.
Foram necessários mais de 30 dias até que se
chegasse a um acordo sobre o texto final. E numa sexta-feira, dia de votações
tradicionalmente esvaziadas no Legislativo, os deputados aprovaram o texto por
371 votos a favor e 121 contra no primeiro turno de votação e por 365 a 118 no
segundo.
A ampla margem de apoio a uma Proposta de
Emenda à Constituição (PEC) pode dar a falsa impressão de que o texto era
consensual. Mas o que unia a todos era o reconhecimento da necessidade de
abandonar um modelo que deu ao País o título de pior sistema tributário do
mundo: arcaico, confuso, cumulativo, regressivo e absolutamente injusto.
A despeito dessa convicção, todas as
tentativas anteriores de reformar o sistema tributário acabaram frustradas.
Esbarrou-se, ao longo desse longo caminho, na resistência dos Estados
produtores, de setores privilegiados e da própria União em dar sua contribuição
para encerrar o manicômio tributário. Há que reconhecer, portanto, os acertos
que levaram a esse verdadeiro feito histórico.
Em vez de buscar protagonismo próprio, o
ministro da Fazenda, Fernando Haddad, acertadamente escolheu apoiar uma
proposta que já tramitava no Congresso desde 2019. Nomeou como secretário
extraordinário da reforma tributária na pasta o economista Bernard Appy, que
dedicou muitos anos de sua vida ao estudo do tema.
Não teria sido possível avançar sem o apoio
dos presidentes da Câmara, Arthur Lira (PP-AL), e do Senado, Rodrigo Pacheco
(PSD-MG). Na Câmara, o texto voltou à relatoria de Aguinaldo Ribeiro (PP-AL),
que já estava familiarizado com a PEC desde o início. No Senado, a escolha do
senador Eduardo Braga (MDB-AM) para a relatoria foi essencial, dado que a
reforma não avançaria sem garantia de apoio à Zona Franca de Manaus.
Acolher as sugestões dos senadores, que
defendiam um Imposto sobre Valor Agregado (IVA) dual em vez de um IVA único da
proposta da Câmara, e manter o Simples Nacional também foram gestos políticos
corretos rumo à reforma possível. A reforma ideal, como se sabe, jamais seria
aprovada.
Os críticos da proposta certamente apontarão
todos os tratamentos especiais que a reforma manteve ou criou. Mas até nisso o
texto final saiu melhor que o esperado, ao excluir os setores de saneamento,
rodovias, telecomunicações, transporte aéreo e micro e minigeração de energia
do rol dos que terão direito a regimes específicos. Muitas das desconfianças em
relação à alíquota final do novo IVA foram dirimidas com essas mudanças
corajosas que os deputados assumiram na reta final da votação.
A despeito de todas as exceções que
permaneceram, haverá um número muito menor de alíquotas, o que é um ganho e
tanto em termos de transparência e conformidade. O sistema de devolução de
crédito pleno será revolucionário para a produtividade e a eficiência de uma
economia que se acostumou a pagar tributo sobre tributo.
O governo ainda enviará os projetos de leis
complementares para regulamentar a reforma. Eles precisarão ser acompanhados
com atenção para não deturpá-la, em especial a cesta básica nacional. No médio
e longo prazos, a União terá de encontrar receitas para abastecer os quatro
fundos para compensar os Estados pelas mudanças, mas o fim da guerra fiscal é
um ganho que não pode ser menosprezado.
A mudança de paradigma trazida pela reforma,
comparável ao Plano Real e ao controle da inflação, ainda levará tempo para ser
compreendida, mas tem tudo para conduzir a uma nova etapa de desenvolvimento e
crescimento econômico, como a sociedade anseia e merece há muito tempo.
O longo combate pela paz na Europa
O Estado de S. Paulo
O triunfo da Ucrânia seria justo, mas é
inalcançável. Concessões resultariam em injustiça. Para uma paz duradoura, a
Ucrânia e seus aliados precisam se preparar para uma guerra longa
As esperanças em um avanço substancial da
Ucrânia evaporaram. A contraofensiva lançada em junho recuperou 0,25% do
território ocupado pela Rússia, bem abaixo da meta mínima. Enquanto o segundo
ano de combate entra em seu ocaso sob o frio e a umidade invernal, o front de
1.000 km está engessado. As tropas estão exaustas; e as munições, exauridas. A
economia ucraniana já encolheu um terço. Os aliados ocidentais dão mostras de
fadiga e distração pela guerra no Oriente Médio.
Não que a ofensiva tenha sido um erro.
Poderia ter dado certo. Mas também poderia não dar certo, e, por várias razões,
não deu. Legal, política e moralmente os objetivos de Kiev – restauração de sua
integridade territorial e compensações pela agressão – seguem inatacáveis. Mas
são inalcançáveis a curto e, possivelmente, a médio prazo. Nutrir esperanças em
uma “vitória a qualquer custo” e investir numa estratégia de acordo com elas
traria poucos ganhos, possivelmente nenhum, e poria muito a perder, possivelmente
tudo.
Quem quer a paz a qualquer custo vê uma
oportunidade. Segundo o jornal alemão Bild, o chanceler Olaf Scholz estaria
planejando com o presidente americano, Joe Biden, pressionar a Ucrânia a
aceitar um cessar-fogo e sentar à mesa de negociações, dandolhe armas
suficientes para sobreviver, mas não para vencer. Os pacifistas radicais
gostariam que o problema simplesmente desaparecesse, com a Ucrânia trocando
“terras por paz”. Os moderados afirmam que a Ucrânia não precisaria renunciar
aos seus objetivos, mas poderia persegui-los por vias diplomáticas, sustentando
um cessar-fogo pelo tempo que fosse necessário.
Ainda assim, faltaria “combinar com os
russos”. O presidente Vladimir Putin não dá sinais de que deseja negociar. Há
poucos dias disse que a guerra não acabará enquanto seus objetivos não forem
alcançados: neutralidade, “desmilitarização” e “desnazificação” da Ucrânia. A
estratégia é erodir o moral ucraniano e ocidental, explorando suas divisões
enquanto aguarda que uma vitória de Donald Trump nos EUA desempate o jogo a seu
favor. Mas, mesmo que ele fechasse algum acordo, seria confiável? Um
cessar-fogo só lhe daria a oportunidade de se rearmar e voltar à ofensiva. E,
mesmo que os ucranianos fizessem todas as concessões, alguém duvida que ele
veria nisso um sinal de fraqueza e um convite a dobrar a aposta?
Assim, se o anseio dos “falcões” é
irrealista, o das “pombas” também é. Um triunfo da Ucrânia seria justo, mas não
está ao alcance. Nas condições atuais, a paz seria injusta, e, mesmo que esteja
ao alcance, o que não é certo, seria só um hiato antes de mais guerra e
injustiças. De um modo ou de outro, uma paz duradoura e, sobretudo, justa está
distante. Se quiserem se aproximar dela, a Ucrânia e seus aliados precisam se
preparar para uma guerra longa.
Tudo indica que, ao menos num futuro próximo,
a Ucrânia precisará alterar a sua estratégia, de ofensiva para defensiva. Isso
passa por manter a guerra de atrito no front, impor o máximo de perdas aos
russos e eventualmente explorar possibilidades de recuperar territórios. Mas a
prioridade é blindar os 80% de território sob seu controle. Para isso precisará
de defesas aéreas, caças F-16 para debilitar a supremacia aérea da Rússia e
mísseis de longo alcance para empurrar suas unidades de suporte.
Isso reduziria o número de baixas das forças
da Ucrânia, diminuiria o risco de que suas fábricas e infraestruturas sejam
destruídas, criaria condições para repatriar ucranianos refugiados e ampliaria
a margem para um fluxo de exportações seguras no Mar Negro. Com mais produção e
comércio, a Ucrânia reduziria a dependência dos auxílios ocidentais. A União
Europeia precisa acenar concretamente à integração da Ucrânia, exigindo como
contrapartida reformas para reduzir a corrupção e fortalecer suas instituições
democráticas e liberais. Se a Ucrânia conseguir reciclar suas forças,
fortalecer sua economia e sanear sua política, poderá mais adiante estar numa
posição para vencer ou, ao menos, entrar com uma mão forte em eventuais
negociações.
A banalidade do impeachment
O Estado de S. Paulo
Sem provas, republicanos abrem processo para
desgastar o presidente Joe Biden antes da eleição
A Constituição dos Estados Unidos dá ao
Congresso a prerrogativa de afastar autoridades federais por meio de processos
de impeachment, se constatados crimes como traição e corrupção, entre outros.
Até que Bill Clinton fosse processado, em 1998, apenas um presidente americano
havia sofrido impeachment (Andrew Johnson, 1868). De Clinton para cá, o
instrumento drástico aparentemente banalizou-se – a ponto de Donald Trump
conseguir a façanha de sofrer impeachment duas vezes. Em todos os casos, os
presidentes foram absolvidos no Senado, mas ficou claro que o impeachment –
que, como bem disse o ex-presidente Fernando Henrique Cardoso, “é como bomba
atômica, existe para não ser usada” – se tornou arma convencional nos EUA para
a oposição fustigar o presidente.
O fustigado da vez é Joe Biden. Dominada pela
oposição republicana, a Câmara dos EUA aprovou a abertura de um processo de
impeachment contra o presidente democrata no último dia 13. Até o momento, não
há evidências de crime ou má conduta de Biden que justifiquem o afastamento,
mas isso aparentemente é irrelevante. Na sessão de votação, a força descomunal
dos republicanos mais radicais, fiéis a Trump, arrastou os votos dos moderados
e superou a minoria democrata.
Bem sabem os republicanos que o processo é
natimorto, pois é improvável que prospere no Senado, controlado pelos
democratas. Mas isso não é relevante para a oposição, cujo único objetivo é
desgastar a imagem do rival de Trump na disputa presidencial do ano que vem.
Neste seu segundo round com Biden, nada melhor para Trump que submeter seu
adversário ao calvário de uma investigação por suposta corrupção e alimentar
sua propaganda eleitoral com qualquer vestígio – infundado ou não – de culpa.
O caso, em si, mostra-se tão frouxo como em
2022, quando não prosperou por falta de provas. Biden é suspeito de ter
favorecido os negócios de seu filho Hunter, um ex-integrante dos conselhos de
administração de empresas da Ucrânia e da China com pendências com a Receita
Federal americana, e se beneficiado deles. Como governante, alegam seus
detratores, o presidente teria mentido e obstruído as investigações de dois
comitês da Câmara que, por esse motivo, não encontraram as provas esperadas.
Para quem vive de fabricar desinformação, o
fato de que as acusações contra Biden carecem até agora de provas não tem a
menor importância. Tudo o que importa é elaborar teorias da conspiração que
reforcem o acervo de mentiras que Trump e seus associados criaram para tentar
deslegitimar a vitória de Biden e seu governo.
Como provavelmente Biden será absolvido, é certo que os republicanos trumpistas usarão esse desfecho como mais uma “evidência” de que o adversário democrata é favorecido pelo establishment político e judicial, contra o qual supostamente Trump se insurge. E assim a política americana seguirá contaminada por uma polarização fabricada pelos inimigos da democracia.
Condições para o crescimento
Correio Braziliense
O Brasil, neste momento, tem perspectivas de
crescimento maior do que a média global e, o que não se vê há décadas, inflação
menor do que muitas nações desenvolvidas
O Brasil encerrará o ano de 2023 muito melhor
do que o previsto pela maioria dos especialistas. As projeções iniciais
apontavam para o crescimento de apenas 0,5% do Produto Interno Bruto (PIB), com
inflação acima do teto da meta, de 4,75%. Os indicadores mais recentes, porém,
sinalizam para avanço de 3% da economia, com o Índice de Preços ao Consumidor
Amplo (IPCA) dentro dos objetivos estabelecidos pelo Conselho Monetário
Nacional (CMN). Melhor: com o desemprego no nível mais baixo desde 2015, juros
em queda, Bolsa de Valores com recorde histórico e uma reforma tributária
aprovada pelo Congresso. Trata-se de um quadro promissor para um país com tanto
por fazer.
A duas semanas de 2024, é de extrema
importância que governo, Legislativo e setor privado não deixem escapar as
oportunidades que estão colocadas. Desde o início do segundo semestre, o ritmo
da atividade está mais lento, o que exigirá medidas mais efetivas para
estimular, sobretudo, os investimentos produtivos. Essa será a principal
alavanca para que, enfim, o Brasil possa retomar o crescimento sustentado. Ao
longo dos últimos anos, os donos do dinheiro botaram o pé no freio ante uma
grave crise política e incertezas no campo econômico. Há três quesitos dos
quais o capital não abre mão para se aventurar: previsibilidade, segurança
jurídica e transparência das regras. Portanto, é hora de seguir o receituário
clássico, que trará ganhos extraordinários para a população.
O Brasil, neste momento, tem perspectivas de
crescimento maior do que a média global e, o que não se vê há décadas, inflação
menor do que muitas nações desenvolvidas. O país se tornou o grande celeiro do
mundo e deve liderar o processo de transição energética. É possível que a
balança comercial encerre o ano com saldo positivo inédito de US$ 100 bilhões,
reforçando as reservas internacionais sob gestão do Banco Central e afastando
qualquer possibilidade de crise externa. Poucas economias no planeta reúnem hoje
condições tão boas para se desenvolver sem sustos. Não por acaso, o Brasil se
tornou o segundo destino de investimentos estrangeiros, atrás somente dos
Estados Unidos.
Nada disso, contudo, indica que será uma
travessia fácil. As demandas da população são enormes. O país tem quase 70
milhões de pessoas na pobreza e cerca de 13 milhões na miséria absoluta. A
despeito da queda da taxa de desemprego, há cerca de 9 milhões de cidadãos sem
trabalho. A inflação, mesmo convergindo para a meta, sempre pode surpreender
para cima. O rombo fiscal maior do que R$ 100 bilhões limita a capacidade de
investimentos do Estado. A violência domina as ruas, com aproximadamente 50 mil
mortes violentas por ano, mais do que muitos países em guerra. A educação está
tão fraca, que mais de 70% dos jovens de 15 anos não sabem noções básicas de
matemática. Tudo isso comprova um quadro desafiador.
Para completar, há a questão climática.
Somente nos últimos 12 meses, o Brasil registrou nove ondas de calor extremo,
que estão prejudicando parte da agricultura e elevando os preços dos alimentos,
um baque para as famílias de menor renda. Nesta primavera, que chega ao fim,
houve o maior número de tempestades extremas desde 2018: 5.213 notificações,
160% a mais em relação à média dos últimos cinco anos. Não há como se falar em
desenvolvimento sustentado sem levar em consideração as rápidas mudanças climáticas
pelas quais o planeta está passando. Nada se sustenta se as condições do clima
não ajudarem.
É mirando para tais desafios, que o Correio realiza, na próxima terça-feira (19), um amplo debate sobre os rumos a serem seguidos pelo Brasil. Há exemplos de sobra no passado recente para evidenciar em que direção não seguir. O país não tem mais o direito de errar. Desde os anos de 1980, vem colecionando crises, com crescimentos medíocres da economia. Na última década, a taxa média de incremento do PIB foi de 0,75% ao ano, nada perante as necessidades do país. A hora é de tirar os dois pés do atraso e olhar para frente sem medo, mas sem perder o juízo. Com certeza, todos ganharão.
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