segunda-feira, 7 de outubro de 2024

Miguel de Almeida - Bestiário municipal em São Paulo

O Globo

Eleição de 2024 estampa a desindustrialização total paulistana e sua transformação em metrópole de serviços

As eleições paulistanas roubaram a cena do restante do Brasil pela obsolescência anunciada de Lula e Bolsonaro e por três episódios sísmicos, capazes de sintetizar o pleito:

1) O carro do Gabinete de Segurança Institucional (GSI), responsável por averiguar a escola onde Lula votaria, foi roubado à luz do dia em São Bernardo do Campo, onde nasceu o PT, com seus ocupantes rendidos sob a mira de revólveres;

2) O manifesto ou cartinha ao Papai Noel de pedido de voto útil em Guilherme Boulos —em detrimento de Tabata Amaral — expôs a tática da velha esquerda petista e a decepção de ilustres personagens com o engodo da frente ampla que elegeu Lula em 2022. A conexão Vila Madalena-USP, como o partido, trouxe os rostos de sempre — olho vivo em 2026;

3) O marketing político da escola baiana de Duda Mendonça, que elegeu Maluf e Lula, vive seus estertores. Apenas o blazer azul, sem a clássica gravata vermelha, continuou no guarda-roupa de Ricardo Nunes e na sua estratégia, copiada por Pablo Marçal, de jamais responder a uma pergunta. No caso, não sabiam o que dizer de fato. Os marqueteiros já fizeram Geraldo Alckmin, o amigo iraniano, falar contra o celular pré-pago e José Serra, como político de opinião, não ter posição sobre o aborto. E a notória Marta Suplicy, do PT, levantar aleivosias sobre a sexualidade de Gilberto Kassab. Anote: os três perderam.

Suzana Flag teria bons personagens para a sua coluna “Meu destino é pecar”, caso acompanhasse o primeiro turno paulistano. Acostumada a narrar adultérios, ciúmes doentios, obsessões e possessões traumáticas, traria agora a seu repertório variações de espancamentos, da masculinidade sob escrutínio, de sabatinas de catecismo e da solidão corporativa do Partido Novo.

Sem nenhum estremecimento de angústia, os candidatos forneceriam ao alter ego de Nelson Rodrigues o retrato da política rendida pelas táticas das redes sociais e pela definitiva assunção da tolerância à mentira e ao descaramento. Da direita à esquerda, de Ricardo Nunes e Pablo Marçal a Guilherme Boulos, ofereceu-se à população a maquiagem de biografias e cenários físicos e a reescrita da história vivida sofregamente para quem enxerga nas ruas um crescimento de “cracudos”, moradores de rua, ladrões de diferentes cepas e obras feitas à beira da eleição.

Esquerda e direita não podem culpar a ingratidão do povo. O envelhecimento do brasileiro aumenta o traço habitual de conservadorismo e religiosidade etérea. Não é de hoje, apenas se alimenta com o tempo. Em 1985, na primeira eleição a prefeito pós-ditadura, Fernando Henrique Cardoso teve de escandir seu ateísmo transparente e seu experimento com maconha (vociferados por Jânio Quadros como o diabo em pessoa na periferia paulistana). FH foi derrotado, mas se tornou depois o presidente que liquidou com a inflação disparada pelos governantes de direita, e a primeira dama Ruth Cardoso criou programas sociais como Bolsa-Escola e Vale-Gás (pode me chamar de “Bolse Famílie”).

Marcada pelas redes sociais e por suas táticas dispersivas, a eleição de 2024 estampa a desindustrialização total paulistana e sua transformação em metrópole de serviços. Sai o emprego formal e entra o personagem autônomo, de múltiplas ocupações. O operário-padrão tinha formação técnica, tendo de saber manejar equipamentos e rotinas por vezes complexas. A robotização liquidou com essa mão de obra. Daí também a evasão escolar num cenário de mitificação do ensino universitário sob um currículo desconectado com o mundo digital.

São Paulo é palco dos trabalhadores das plataformas desde a pandemia, todos indiferentes ao discurso petista (e psolista) da carteira assinada, da sindicalização ou do bom patrão. O povo dos aplicativos não aspira pela CLT porque se oferece simultaneamente a dois ou três diferentes empregadores. Ficam com quem paga mais a cada instante. Os autônomos dos apps vendem seus produtos nos marketplaces, perfis de Instagram ou TikTok, surgem formatados para ser independentes no mercado inaugurado pelas novas tecnologias.

Aí as dissonâncias de Nunes e Boulos diante do novo perfil do eleitor paulistano. O discurso assistencialista do velho PT ou o populismo da direita são truques conhecidos no jogo. Ainda sobrevivem porque se apoiam ora no manjado e servil voto útil, ora no uso escancarado da máquina estatal (os papéis se alternam conforme as conveniências de turno). Os votos de Marçal colocaram outros desejos na partida. Vale notar que parte do PT fez corpo mole a favor de Nunes.

 

2 comentários:

Anônimo disse...

A uberização da mão de obra não é escolha do trabalhador que sonha "empreender'. É fruto da precarização plantada para aumentar os lucros sobre o sofrimento alheio - o individualismo e a indiferença ao próximo foi o inesperado(?) efeito colateral que alimenta a popularização

Anônimo disse...

... da direita radical.