segunda-feira, 27 de outubro de 2008

Reinventar o governo, de novo


Fábio Wanderley Reis
DEU NO VALOR ECONÔMICO


Usei como título, há algumas semanas, a expressão " reinventar o governo " , tomada de um volume de David Osborne e Ted Gaebler que se festejou anos atrás. A mensagem do volume era a de tratar de tornar os governos " enxutos " e eficientes, batendo-se contra a rigidez burocrática (de maneira que não escapava, aliás, da acolhida a certos equivocados simplismos quanto ao tema da burocracia).

A crise econômico-financeira que agora vivemos, com seu alcance transnacional e mesmo global, propõe um desafio de reinvenção do governo em termos bem diferentes. A idéia corrente sobre as relações entre mercado e Estado é a de oposição ou antagonismo: quanto mais Estado, menos mercado, e vice-versa. Mas as coisas são mais complicadas, e a complicação é claramente relevante para os problemas de uma dinâmica mundial em que o processo de globalização, como sua característica crucial, diz respeito ao que se passa no plano das relações de mercado - sem correspondência, cuja necessidade a crise atual evidencia de forma dramática, com a apropriada expansão para o plano transnacional e global de agentes e mecanismos capazes de cumprir as funções que o Estado cumpre há muito, nos tempos modernos, no plano nacional.

Com efeito, as análises intelectualmente mais vigorosas do desenvolvimento conjunto do capitalismo e dos Estados nacionais, no pós-Renascimento europeu, destacam justamente a articulação dos dois aspectos. Nos trabalhos de Giovanni Arrighi, por exemplo, tributários de estudos clássicos que remontam a Marx, sucessivos " ciclos sistêmicos de acumulação " (o hispânico-genovês, o holandês, o britânico, o americano) se caracterizam pela combinação da dinâmica especificamente econômica com a dinâmica dos fatores de natureza político-territorial. Um traço saliente é a expansão gradual da escala do ordenamento político em que se enquadram os processos econômicos, indo desde o caso de Gênova, em que o dinamismo capitalista é quase totalmente carente de substrato político-territorial (impondo-se a articulação " externa " com o poder político espanhol), até as dimensões continentais do Estado-nação americano, onde se juntam a " internalização " do mercado e o controle de instrumentos políticos capazes de se fazerem valer externamente.

Essa articulação mercado-Estado tem a ver diretamente com as complicações sugeridas nas relações entre eles, em contraste com a visão de senso comum. O mercado, como propunha Max Weber, supõe relações entre estranhos, cuja motivação tende a ser pouco afim a considerações solidárias, ou relativas a objetivos coletivos mais amplos, e mesmo a envolver ou redundar em hostilidade ou beligerância. A regulação pelo Estado é crucial para neutralizar tais tendências e viabilizar as relações mercantis como relações duradouras. Naturalmente, se temos múltiplos Estados organizados em separado e caracterizados por assimetrias de poder importantes (devido justamente, entre outras coisas, à escala diferencial em que Estado e economia se articulam em cada caso), então a globalização " mercantil " não poderá deixar de ter um componente " imperial " . A grande indagação é a de como marchar eventualmente para a implantação do equivalente funcional do Estado capaz de eficácia no plano transnacional sem que isso redunde na simples institucionalização daquele componente, em vez de assegurar sua neutralização e algum caráter igualitário ou democrático ao processo.

Duas ponderações parecem justificar-se aqui. Em primeiro lugar, o reconhecimento realista de que alguma assimetria de poder é inevitável como requisito e mesmo como instrumento de eventuais esforços bem sucedidos de integração e coordenação política. Assim como regiões hegemônicas tiveram historicamente papel importante nos processos clássicos de integração nacional, não é à toa que foi preciso que a crise atingisse os países centrais do capitalismo mundial, diferentemente de ocasiões anteriores, para que tivéssemos a movimentação que vemos agora visando à criação de mecanismos de ação coordenada em escala transnacional ou global.

Por outro lado, as circunstâncias gerais em que se dá a crise têm engendrado a emergência gradual de um mundo multipolar, num processo que a crise mesma intensifica, ao debilitar as economias centrais, os Estados Unidos em particular. Isso tende a reforçar as razões para esperar que os avanços rumo a uma forma incipiente de governo mundial no plano econômico-financeiro possam fazer-se com base em algum modelo de inspiração federalista e mais democrática.

Eleição em BH

As idas e vindas que as pesquisas têm revelado tornam especialmente interessante a luta eleitoral pela Prefeitura de Belo Horizonte, sobretudo com a singularidade do apoio de Aécio Neves e Fernando Pimentel. Aparentemente, o apoio, suficiente para guindar o " poste " Márcio Lacerda à vantagem no primeiro turno, não tinha, por si mesmo, poder para levá-lo a ganhar a eleição diante da surpresa da eficiente comunicação popular de Leonardo Quintão. Mas a campanha do segundo turno permitiu duas revelações: a " despostificação " de Lacerda, falando por si mesmo e convencendo, e o desnudamento da demagogia de Quintão, levando ao refluxo de gente antes desconfiada da movimentação da dupla tucano-petista de padrinhos do primeiro.

Resta esperar que a eventual vitória de Lacerda (escrevo na sexta-feira...) ainda traga desdobramentos positivos à boa idéia da aproximação PSDB-PT. Que, naturalmente, em vez de confiar na resposta alumbrada dos eleitores à convocação de um líder ou outro, teria de contar com trabalho político pedestre e difícil.

Fábio Wanderley Reis é cientista político e professor emérito da Universidade Federal de Minas Gerais. Escreve às segundas-feiras

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