DEU EM IDEIAS & LIVROS / JORNAL DO BRASIL
RIO - Como estão hoje as crenças dos crentes? E as descrenças dos descrentes?
Ideias nem sempre claras são defendidas por representantes das duas perspectivas, que constituem campos complexos, matizados. Em ambos os casos, as exigências de um aprofundamento do conhecimento abrangem polos que vão da fé inabalável ao mais arraigado ceticismo.
Impõe-se a pergunta: como se tocam os extremos? Em outros termos: em que pé as convicções apaixonadas de uns e outros conseguem dialogar? Essa é uma questão importante. Quando os interlocutores se defrontam com diferenças mais explosivas, aumentam as possibilidades de ossificação do pensamento. E cresce o risco do fanatismo.
Historicamente, a disputa não tem sido uma parada festiva: ações censuráveis foram cometidas por ambos os lados. Os crentes são a ampla maioria. Não gostam de perder tempo em debates inúteis. Vão direto ao ponto crucial, segundo a sua doutrina. “Você não acredita em Deus?”.
O ateu, em sua resposta, decepciona a maioria. No passado, no tempo da inquisição, a decepção virava feroz intolerância. Numa outra época, na União Soviética, os bolchevistas tentaram erradicar – em vão – o sentimento religioso da alma do povo. Eram ateus tentando impor o ateísmo por decreto.
Os dois lados fazem criticas ferinas um ao outro. E fazem autocríticas, reconhecendo seus limites. Atualmente, as condições, ao que parece, estão ficando mais civilizadas. E o primeiro nome que me ocorre para ilustrar essa sofisticação cultural é o do escritor português José Saramago.
Saramago recebeu o Prêmio Nobel em 1998, publicou Memorial do convento, O ano da morte de Ricardo Reis, O evangelho segundo Jesus Cristo e mais recentemente lançou Caim, que está causando polêmica.
Usando sua liberdade de criação, Saramago faz de Cristo o narrador dos acontecimentos de sua vida. Tínhamos quatro Evangelhos e agora, graças à ficção, temos cinco.
Mas a audácia do escritor não para aí: em Caim, o protagonista é narrador, com base em alguns episódios do Velho Testamento. Denuncia o senhor (assim mesmo, com minúscula), acusando-o de cumplicidade no assassinato de Abel, porque, sendo onisciente, sabia do que estava para acontecer e; sendo onipotente, poderia tê-lo impedido de acontecer.
Quando o senhor ordena que seu servo Abraão sacrifique seu dileto filho Isac, Caim se irrita com a crueldade do senhor e termina por insultá-lo, com palavras de baixo calão.
Saramago dá um show de erudição. Seus conhecimentos não o impedem de, em alguns momentos, exagerar um pouco. Talvez essa tenha lhe parecido ser a maneira de sacudir com suficiente vigor as almas de seus leitores.
Saramago é um ateu que pode proporcionar momentos privilegiados, os quais interessam às duas perspectivas. Suas possíveis consequências vão desde um reajuste das criticas que se fazem mutuamente, no campo do pensamento religioso, até uma reflexão mais densa e mais cuidadosa na qual os descrentes saibam evitar gestos e atitudes que sejam lidos como desrespeitosos.
Se não perdermos anos decisivos de nossas vidas, podemos prever que ocorrerão novos movimentos que mexerão conosco, serão capazes de nos convencer a adotarmos novos critérios.
Não resisto a apontar um palpite meu. Acho que a teologia tem sobre outros saberes uma vantagem considerável. A ideologia dominante, na época atual, assume a forma do relativismo, que exerce forte influência em várias regiões científicas. Muitos cientistas cultivam uma acentuada desconfiança na filosofia. E, recusando a dialética, cada um deles trata de relativizar os conhecimentos da sua área.
A teologia não se deixou levar por esse movimento. Seu nome indica que ela se ocupa de Deus. E é obvio que Deus – quer acreditemos n'Ele, quer sejamos céticos – não pode ser relativizado. A teologia, como mostra o nosso autor, é apaixonante, porque as questões que ela enfrenta são questões grandes, que não se deixam reduzir a um jogo mesquinho.
O marxista José Saramago sabe disso. Quando faz suas incursões na esfera da teologia, o ateu debocha, torna-se sarcástico. Mas deixa transparecer o quanto a estudou, o quanto assimilou dela.
RIO - Como estão hoje as crenças dos crentes? E as descrenças dos descrentes?
Ideias nem sempre claras são defendidas por representantes das duas perspectivas, que constituem campos complexos, matizados. Em ambos os casos, as exigências de um aprofundamento do conhecimento abrangem polos que vão da fé inabalável ao mais arraigado ceticismo.
Impõe-se a pergunta: como se tocam os extremos? Em outros termos: em que pé as convicções apaixonadas de uns e outros conseguem dialogar? Essa é uma questão importante. Quando os interlocutores se defrontam com diferenças mais explosivas, aumentam as possibilidades de ossificação do pensamento. E cresce o risco do fanatismo.
Historicamente, a disputa não tem sido uma parada festiva: ações censuráveis foram cometidas por ambos os lados. Os crentes são a ampla maioria. Não gostam de perder tempo em debates inúteis. Vão direto ao ponto crucial, segundo a sua doutrina. “Você não acredita em Deus?”.
O ateu, em sua resposta, decepciona a maioria. No passado, no tempo da inquisição, a decepção virava feroz intolerância. Numa outra época, na União Soviética, os bolchevistas tentaram erradicar – em vão – o sentimento religioso da alma do povo. Eram ateus tentando impor o ateísmo por decreto.
Os dois lados fazem criticas ferinas um ao outro. E fazem autocríticas, reconhecendo seus limites. Atualmente, as condições, ao que parece, estão ficando mais civilizadas. E o primeiro nome que me ocorre para ilustrar essa sofisticação cultural é o do escritor português José Saramago.
Saramago recebeu o Prêmio Nobel em 1998, publicou Memorial do convento, O ano da morte de Ricardo Reis, O evangelho segundo Jesus Cristo e mais recentemente lançou Caim, que está causando polêmica.
Usando sua liberdade de criação, Saramago faz de Cristo o narrador dos acontecimentos de sua vida. Tínhamos quatro Evangelhos e agora, graças à ficção, temos cinco.
Mas a audácia do escritor não para aí: em Caim, o protagonista é narrador, com base em alguns episódios do Velho Testamento. Denuncia o senhor (assim mesmo, com minúscula), acusando-o de cumplicidade no assassinato de Abel, porque, sendo onisciente, sabia do que estava para acontecer e; sendo onipotente, poderia tê-lo impedido de acontecer.
Quando o senhor ordena que seu servo Abraão sacrifique seu dileto filho Isac, Caim se irrita com a crueldade do senhor e termina por insultá-lo, com palavras de baixo calão.
Saramago dá um show de erudição. Seus conhecimentos não o impedem de, em alguns momentos, exagerar um pouco. Talvez essa tenha lhe parecido ser a maneira de sacudir com suficiente vigor as almas de seus leitores.
Saramago é um ateu que pode proporcionar momentos privilegiados, os quais interessam às duas perspectivas. Suas possíveis consequências vão desde um reajuste das criticas que se fazem mutuamente, no campo do pensamento religioso, até uma reflexão mais densa e mais cuidadosa na qual os descrentes saibam evitar gestos e atitudes que sejam lidos como desrespeitosos.
Se não perdermos anos decisivos de nossas vidas, podemos prever que ocorrerão novos movimentos que mexerão conosco, serão capazes de nos convencer a adotarmos novos critérios.
Não resisto a apontar um palpite meu. Acho que a teologia tem sobre outros saberes uma vantagem considerável. A ideologia dominante, na época atual, assume a forma do relativismo, que exerce forte influência em várias regiões científicas. Muitos cientistas cultivam uma acentuada desconfiança na filosofia. E, recusando a dialética, cada um deles trata de relativizar os conhecimentos da sua área.
A teologia não se deixou levar por esse movimento. Seu nome indica que ela se ocupa de Deus. E é obvio que Deus – quer acreditemos n'Ele, quer sejamos céticos – não pode ser relativizado. A teologia, como mostra o nosso autor, é apaixonante, porque as questões que ela enfrenta são questões grandes, que não se deixam reduzir a um jogo mesquinho.
O marxista José Saramago sabe disso. Quando faz suas incursões na esfera da teologia, o ateu debocha, torna-se sarcástico. Mas deixa transparecer o quanto a estudou, o quanto assimilou dela.
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