domingo, 31 de outubro de 2010

Era uma vez Montéquios e Capuletos:: José Garcez Ghirardi

DEU EM O ESTADO DE S. PAULO /ALIÁS

O Brasil merece mais do que a simples desqualificação da diferença ideológica como vileza, má-fé ou interesse

O que há em um nome? A tragédia de Romeu e Julieta deriva do fato de que os indivíduos, suas razões, seus afetos e desejos se tornam secundários à pertença a um grupo específico. As ações e o discurso de cada uma das personagens são avaliados não por seu valor intrínseco, mas como manifestação de um outro a quem é compulsório rejeitar. O recente debate político brasileiro repete, a seu modo, a mesquinhez obtusa que está no coração da peça de Shakespeare. Visões políticas contrárias são apresentadas como índice não da divergência que constitui a base mesma da democracia, mas como sinal da torpeza moral do adversário.

Acusam-se uns de optarem por um candidato porque são prisioneiros das esmolas dos programas governamentais, como se a pobreza desqualificasse para a reflexão política. Acusam-se outros de votar no partido oposto porque fazem parte de uma elite que não suporta ver o povo no poder, como se a suficiência econômica impedisse o desejo da justiça social.

Dados factuais em contrário e contradições internas a cada um dos discursos - e são tantas - tornam-se irrelevantes nesse diálogo de surdos em que a redução do debate à oposição entre "santos patriotas" e "demônios oportunistas" parece ser o único ponto de encontro entre Montéquios e Capuletos. Posicionamentos políticos cruciais e compromissos claros com difíceis opções futuras - e são tantos - são descartados em favor de uma retórica que, protestando abominar fazê-lo, opta antes por alardear os defeitos alheios que comprovar as virtudes próprias. O resultado, como no drama dos jovens amantes, é uma lamentável tragédia, e mais lamentável porque absolutamente desnecessária, porque fruto não da natureza das coisas, mas da opção de sacrificar o cotejo de ideias a uma animosidade mútua, empedernida e profunda.

O povo brasileiro merece mais. Fonte verdadeira e última dos ganhos e conquistas de que uns e outros querem cabotinamente se apropriar, o povo brasileiro merece que a discussão sobre o bem coletivo receba mais espaço que as arengas sobre as misérias pessoais. Merece que o debate minucioso sobre as implicações práticas de escolhas específicas prevaleça sobre a prestidigitação efêmera do marketing eleitoral. Merece, e tem maturidade e grandeza para isso, que se lhe apresentem propostas para a difícil tarefa de fazer com que a bonança passageira do presente se transforme na justiça duradoura no futuro.

É possível construirmos outra lógica de debate. É possível acreditar que a grande maioria daqueles que irão votar em Dilma e Serra, bem como daqueles que irão anular seu voto ou votar em branco não o estejam fazendo por razões mesquinhas, nem por interesses escusos, nem por preconceitos tacanhos. É possível acreditar que estejam agindo assim porque entendem, honestamente, que seu gesto irá contribuir para um país melhor. O fato de discordarmos da escolha que fazem não nos autoriza a duvidar, a priori, das razões porque a fazem.

O mais assustador, nesse processo eleitoral que agora finda, não é que tenha havido agressões gratuitas e precipitadas entre os candidatos, numa lógica de imputar sempre ao outro a má-fé ou a ignorância. O mais assustador foi ver o quanto dessa lógica saltou para as conversas nos bares, nos escritórios, nas universidades, nas fábricas e repartições. Para evitar rusgas maiores, amigos e colegas de trabalho decretam: "Não vamos discutir política". Não creio que seja por esse silêncio que se haja lutado pela democracia. Não creio que esse abandono do debate seja uma solução, mas um problema, triste e grave.

A poucas horas do final de mais um processo eleitoral, penso que vale a pena fazermos uma pausa para pensarmos qual o desenho de debate político e de sociedade queremos construir para o futuro. Um caminho é o de desqualificar automaticamente a diferença ideológica como vileza, má-fé, primarismo miserável ou torpe interesse de classe. É decidir que o campo de que parte um argumento ou proposta resume-lhe de antemão o valor, e que não vale a pena perder tempo com aqueles que não pensam como nós.

Outra possibilidade é abraçar a noção de que somos um país complexo, imenso e heterogêneo, cujos problemas presentes e perspectivas futuras não são simples de resolver, nem fáceis de construir. Abraçar a noção de que podemos, com o coração grande, discordar, ainda que - e porque - imbuídos de integridade e de princípios legítimos. Abraçar a noção de que o respeito efetivo e quotidiano à diferença, fundamento das democracias que merecem esse nome, é aquilo pelo que, de um lado e de outro, vale a pena lutar.


José Garcez Ghirardi é professor de Artes e Direito na Direito GV

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