quarta-feira, 23 de fevereiro de 2011

Contra o voto em lista :: Eduardo Graeff

A proposta do voto em lista preordenada parece boa demais para o PT. Se eu fosse a oposição, só isso bastaria para ficar com um pé atrás. Mas a proposta, além de tudo, periga aumentar a distância entre eleitores e deputados, ou seja, pode agravar o maior problema que uma reforma eleitoral deveria resolver. Isso basta para deixar com os dois pés atrás qualquer um preocupado com a saúde da democracia no Brasil.

Pelo sistema de lista aberta que adotamos, o eleitor vota diretamente num candidato e indiretamente no seu partido. Relativamente poucos usam a opção do voto na legenda. A soma dos votos da legenda e de seus candidatos determina o número de deputados eleitos pelo partido. Se o partido eleger X deputados, entram os X candidatos mais votados.

Pelo sistema de lista preordenada dá-se o contrário: o eleitor vota diretamente num partido e indiretamente nos seus candidatos. A votação do partido determina o número de deputados eleitos por ele. Se o partido eleger X deputados, entram os X primeiros colocados da lista de candidatos, na ordem previamente definida pelo partido.

Já escrevi neste espaço sobre os defeitos do sistema de lista aberta (Um caminho suave para a reforma, 26/11/2010). Ele deixa os deputados na corda bamba, enfraquece os partidos e desnorteia os eleitores. A grande maioria dos eleitores "perde o voto" e acaba sem um deputado que possa reconhecer como seu. Isso distancia os eleitores dos deputados e concorre para a baixíssima confiança do público no Congresso Nacional, constatada pelas pesquisas de opinião.

O sistema de lista preordenada teria duas vantagens, segundo seus defensores: fortaleceria os partidos e seria mais compatível com o financiamento público de campanha. Com efeito, o mandato dos deputados eleitos por esse sistema pertence indiscutivelmente ao partido, pois o partido é que foi votado. Por isso mesmo a propaganda eleitoral tem de dar mais peso aos partidos, o que tornaria natural entregar a eles, e não aos candidatos individuais, as verbas públicas para campanha.

Pode-se discutir infinitamente, em tese, as vantagens e as desvantagens dos sistemas eleitorais. Mas seria ingênuo ignorar que hoje, no Brasil, as vantagens do voto em lista preordenada seriam bem maiores para o PT. Atualmente o PT tem a marca partidária mais forte. Que outros partidos seriam páreo para ele? Talvez o PSDB e o PMDB. O PT levaria também a maior fatia do financiamento público de campanha, se o critério de distribuição for o número de deputados eleitos na eleição anterior. Sem contar as verbas públicas de sindicatos e ONGs que já financiam o PT por vias tortas.

Olhado assim, o voto em lista preordenada parece uma fórmula sob medida para fixar e exponenciar as vantagens eleitorais do atual esquema de poder. Isso interessa ao PT, claro. E à oposição?

A oposição poderia vacilar se a mudança, mesmo ruim para ela, fosse boa para os eleitores. Mas não é.

Na dúvida, o certo seria consultar os eleitores por um plebiscito. Aposto que o voto em lista preordenada seria rejeitado por ampla maioria, como o parlamentarismo foi rejeitado em 1993, por uma razão parecida: a percepção de estar sendo privado do direito de eleger diretamente o seu deputado. E não é disso mesmo que se trata, afinal?

De novo, pode-se discutir infinitamente, em tese, se eleição indireta pode ser tão democrática quanto a direta. O fato é que no Brasil, pela nossa história, a ideia de democracia está totalmente associada à eleição direta em todos os níveis. Imagine a confusão e a frustração do eleitor se fosse surpreendido por uma mudança dessa magnitude decidida pelo Congresso sem consulta popular.

Se o impacto inicial da mudança não bastasse para chocar o eleitor, o funcionamento do novo sistema teria tudo para frustrá-lo e esgarçar de vez suas relações com os deputados, os partidos e o Congresso. Quem quiser que se iluda imaginando a seleção dos candidatos a deputado pelos partidos sendo balizada por vivas discussões programáticas, com participação das bases. Conhecendo os nossos costumes políticos, o que eu consigo visualizar é, antes, um vale-tudo na disputa pelas posições no alto das listas preordenadas. Luta livre com a imprensa na porta das convenções partidárias, para registrar os lances mais escandalosos, e a polícia, o Ministério Público e a Justiça no dia seguinte, para fazer o rescaldo. Nada que não se corrija com a prática? Pode ser. Mas há caminhos e caminhos para o aprendizado político, como qualquer aprendizado. O caminho dessa proposta me parece absurdamente arriscado.

Tanto por instinto de sobrevivência quanto por cuidado com a saúde da nossa democracia, portanto, a oposição tem razões para se opor à proposta do voto em lista preordenada.

Para isso a oposição precisa, antes de tudo, definir uma alternativa. Boa parte dela se inclina para o voto distrital, que me parece a proposta mais fácil de explicar e ganhar o apoio da maioria dos eleitores. Se for mais difícil sensibilizar o Congresso do que os eleitores (lembrando que a adoção do voto distrital depende de uma emenda constitucional aprovada por 3/5 dos deputados e senadores), há propostas intermediárias que podem ser negociadas: o sistema misto, proporcional e distrital; talvez um sistema proporcional com circunscrições eleitorais de quatro a seis deputados cada, como eu sugeri no artigo citado.

O importante é que a oposição não demore para se definir e, sobretudo, que dialogue com a opinião pública e busque seu apoio ativo. Se a oposição, desidratada como está, deixar que essa discussão se limite ao Congresso, corre um enorme risco de ser tratorada.

Cientista político, foi Secretário-Geral da Presidência da República (Governo FHC)

FONTE; O ESTADO DE S. PAULO

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