domingo, 6 de fevereiro de 2011

E o ditador cavou seu buraco

Ao subestimar início dos protestos e calar a internet, Mubarak fomentou a crise que o vai engolir

Carolina Rossetti

O mundo árabe ferve por democracia. A Tunísia foi a primeira faísca. Logo em seguida, armou-se a fogueira no Egito. É sob essa ótica incendiária que o cientista político Tarek Masoud, da Kennedy School of Government, da Universidade Harvard, analisa a recente onda de protestos que tomou e faz trepidar a Praça Tahrir, no Cairo.

Há um desejo por democracia varrendo o mundo árabe, acredita ele, e "o Egito há tempos acumula combustível anti-Mubarak." Masoud admite que o futuro do país ainda é nebuloso, mas arrisca a dizer que uma transição pacífica teria mais chance de nascer se ao presidente Hosni Mubarak fosse concedida uma última fagulha de poder.

Acredita que Mubarak deveria ter uma sobrevida no cargo de algumas semanas para poder convocar eleições. E a prioridade agora, assegura, mais que evitar que fundamentalistas islâmicos componham o próximo governo, seria garantir que os militares não abortem o ensejo democrático do povo.

Levantes populares pró-democracia na Tunísia, Egito e Iêmen: testemunhamos o despertar de um novo mundo árabe?

Essa região é uma enorme pilha de madeira seca altamente inflamável. A deposição do ditador Zine el Abidine Ben Ali da Tunísia foi o fósforo que acendeu a fogueira. Mas o Egito, há tempos, acumula combustível anti-Mubarak. Na esfera econômica, o governo é tido como incompetente para lidar com as altas taxas de desemprego e a distribuição de renda. No campo político, sufoca qualquer ânsia popular por participação. O importante é que seus leitores saibam que as ruas do Egito não foram tomadas por pessoas famintas e descalças, pedindo pão e emprego. São pessoas que lutam para ver seus direitos políticos restaurados. Elas estão dizendo: "Todas as vias do poder levam ao presidente". São argumentos políticos gritados a todo pulmão por pessoas simples do povo. Apesar de terem nascido sob o regime de Mubarak, os jovens egípcios sabem o que é democracia. Com a internet, os livros, as TVs estrangeiras, eles têm uma janela para o mundo. Inspiram-se nos protestos dos venezuelanos contra Hugo Chávez ou na estratégia usada pelos sérvios para depor Slobodan Milosevic. Existe um intercâmbio de ideias entre ativistas do mundo todo para descobrir maneiras eficazes de desafiar regimes autoritários.

Essa onda democrática vai ecoar na região e atingir teocracias como o Irã?

Há um desejo por democracia varrendo o mundo árabe. Se isso vai crescer e se transformar verdadeiramente em uma onda democrática, dependerá de como os regimes e a comunidade internacional vão responder ao desejo do povo oprimido. Agora, os iranianos não precisam se inspirar nos egípcios. O Irã, no verão de 2009, já teve uma experiência parecida. O problema é que a sociedade iraniana é profundamente dividida e as forças democráticas encontram uma oposição à altura nos defensores do regime de Ahmadinejad. No Egito, esse não é o caso. Existe uma mágoa acumulada que está finalmente transbordando.

Que alternativa a oposição egípcia oferece?

Não está claro até o momento. O futuro do país ainda é nebuloso e está sendo decidido. Não se sabe que oposição é essa. Mohamed ElBaradei emergiu como um líder potencial, mas sua popularidade entre o povo é fraca. Ele pode ter sido mais útil como símbolo da oposição que como um líder de fato. Existem outros nomes muito respeitados. O ex-ministro de Relações Exteriores do Egito e secretário-geral da Liga Árabe, Amr Mohammed Moussa, é alguém que a oposição respeita e poderia aceitar como porta-voz. O maior desafio da oposição agora é traduzir os vibrantes protestos de rua numa organização que possa negociar com o governo.

Haverá um despertar do poder islâmico no Egito?

A Irmandade Muçulmana é o grupo político mais ativo e energético do país e está envolvida nos protestos de forma significativa. Mas ela não inspirou as manifestações, não está na liderança e não tem feito uso de seus slogans e símbolos religiosos. Esses protestos não são sobre o Islã, mas sobre democracia, liberdade e o fim do exercício arbitrário do poder. O interessante é que as pessoas que querem a implantação de uma lei islâmica no país estão aliando-se com outras que querem um governo secular. Na quinta-feira, a Irmandade não quis dialogar com o governo. Ela sabe que se sentar para conversar com Mubarak perderá credibilidade nas ruas. E sabe também que o aumento de sua influência poderá ser usada pelos militares como justificativa para abortar o nascimento de um Egito democrático. A prioridade agora é garantir que não só Mubarak, mas também as Forças Armadas, se retirem da vida política. Isso é mais importante que assegurar que os islâmicos participem do próximo governo.

De início pacíficos, os protestos da Praça Tahrir explodiram em violência. Existe ainda chance de uma transição pacífica?

A única chance de uma transição ordenada e segura se daria pelas vias constitucionais. Para iniciar esse processo, faria sentido que Mubarak continuasse no poder por mais algumas semanas, mas não até o final de seu mandato. O Parlamento precisa ser dissolvido e novas eleições convocadas. E não só isso. Fundamentalmente, o que o Egito precisa é de uma nova Constituição. Primeiro porque hoje não há meios legais para que políticos independentes como ElBaradei registrem suas candidaturas. Segundo porque é preciso limitar o alcance do presidente, seja ele quem for, para que o próximo líder não tenha os mesmos poderes imperiais de Mubarak. Se o ditador embarcar no próximo avião para a Arábia Saudita as manifestações poderão aos poucos se dissipar, deixando por conta de ElBaradei e dos seus negociar com os militares, sem o apoio das massas para respaldar a negociação. Uma saída constitucional vai impedir que os militares liderem a transição e se consolidem no poder. Mas Mubarak errou em todos os momentos possíveis. Ele não respondeu às preocupações de seu povo no primeiro dia de protestos. Calou a internet. Revelou para todo o mundo que sua preocupação principal era manter sua posição e não a estabilidade do país e a segurança dos cidadãos. Isso criou uma barreira intransponível para que as pessoas pudessem vir algum dia a aceitar sua liderança de novo. Foi Mubarak, e sua incompetência em gerenciar essas manifestações, que o excluíram do futuro político do Egito.

De que forma a possível queda de Mubarak pode afetar a política externa americana na região?

Vimos florescer nessa semana o que eu creio ser o maior desafio para a política externa dos Estados Unidos sob a administração de Obama. Como se dará o diálogo com os ditadores do mundo árabe agora? Recentemente, o atual primeiro-ministro, Ahmed Shafiq, grande amigo de Mubarak, apareceu na TV e, numa entrevista, peitou diretamente os americanos, dizendo "escuta aqui, um país com 200 anos de existência não tem cacife para nos dizer o que devemos fazer". Nessa semana, Obama sinalizou para os líderes do Oriente Médio que as alianças podem ser desatadas perante o clamor do povo nas ruas. Mas mesmo assim, nas ruas de Cairo as críticas aos Estados Unidos subiram de tom porque Obama não apoiou de imediato as aspirações legítimas do povo. Na tentativa de se fazer de esperto e enganar o diabo, o presidente americano conseguiu ser criticado tanto pelo povo quanto pelo ditador. Mubarak chegou a dizer que Obama não entende nada da cultura egípcia e não tem ideia do que poderá ser do país caso ele seja deposto. Chegou a hora de Obama ser assertivo, deixar claro o que espera de Mubarak e avisar o Exército que o financiamento americano só vai continuar se os militares se comportarem nessa transição. Acho que Obama não conquistou nada nesse episódio e só reforçou a imagem de que os americanos são titubeantes e incapazes de saber com certeza de que lado da luta estão.

FONTE: ALIÁS/ O ESTADO DE S. PAULO

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