Famoso pela austeridade, autor é tema da palestra de Milton Hatoum na Flip
Ubiratan Brasil
A contradição provocou um espanto e criou um momento mágico - jovem estudante, Milton Hatoum estava acostumado a viver cercado de água. Era a década de 1960 e ele morava em Manaus, cidade decisivamente marcada pela caudalosa presença do Rio Amazonas. "Foi quando li Vidas Secas e descobri a terra árida, sem vida, sedenta - era um outro país, desconhecido para mim, uma nova geografia", conta ele, no momento em que prepara sua palestra sobre Graciliano Ramos que fará na abertura da próxima Festa Literária Internacional de Paraty, a Flip, no dia 3 de julho.
Ciente das características do homenageado, Hatoum elabora um discurso breve, enxuto, direto. Em conversa com o Estado, ele revelou alguns dos pontos que serão tratados. "Graciliano gostava de uma linguagem nítida, direta, que expressava a situação social, política e psicológica de seus personagens", observa o autor de Dois Irmãos. De fato, o escritor que nasceu em 1892, em Quebrangulo, interior de Alagoas, onde a água era pouca e a fome muita, e morreu no Rio de Janeiro, em 1953, vítima de câncer no pulmão, era um homem austero.
O rigor, além das condições do ambiente em que viveu, talhou sua alma de forma permanente, influenciando sua obra, composta por observações colhidas de sua vivência pessoal e marcada pela rudeza da paisagem nordestina. Sob um estilo severo de escrever, Graciliano conseguiu um equilíbrio profundo entre a investigação psicológica e a situação social de seus personagens.
Foi o que constatou o jovem Hatoum, quando vivia em Manaus. Foi por conta dessa forte lembrança, que ele decidiu aceitar o convite da Flip para abrir o evento em grande estilo. Por conta disso, começou a reler os textos de Graciliano, que se resumem a poucos volumes. "A base de sua obra surge na década de 1930, quando a produção do romance social nordestino era muito grande. É o momento em que surgem autores que fazem denúncias, como José Lins do Rego e Jorge Amado. Graciliano, no entanto, seguiu outro caminho graças à sua linguagem focada no homem."
Hatoum nota que, como poucos, Graciliano percebeu as contradições da sociedade, especialmente a nordestina. "Basta observar a descrição que ele faz da fazenda em São Bernardo ou de Maceió em Angústia. Aliás, a cidade sempre esteve presente, mesmo quando ausente. Graciliano notou que a modernização não foi igualitária e provocou mais contradições do que mudanças estruturais."
Atento observador
Graciliano Ramos transformou em ficção problemas nordestinos sem se esquecer da força da presença do homem
O poeta João Cabral de Melo Neto não acreditava em inspiração - para ele, a obra-prima era fruto do extenuante trabalho com a palavra. Milton Hatoum acredita que Graciliano Ramos se enquadra muito bem nesse rigor cabralino. "Em sua obra, Graciliano ficcionalizou os problemas sem diminuir as deficiências observadas", comenta o colunista do Caderno 2. "Ele soube transformar experiências em linguagem - esse é o maior desafio da literatura, ou seja, transformar o artifício da palavra em verdades humanas."
Basta folhear Vidas Secas, último romance escrito por Graciliano (os demais foram contos e memórias) e sua única experiência com foco narrativo na terceira pessoa. Criado a partir de um conto, Baleia, o livro consumiu seis meses de árduo trabalho e, segundo o próprio autor, pretendia apresentar a dilacerante consciência da condição humana rarefeita na caatinga. "O que me interessa é o homem daquela região aspérrima", disse, em uma rara entrevista. "Julgo que é a primeira vez que esse sertanejo aparece em literatura (...) porque os escritores regionalistas comumente não conhecem o sertão, não são familiares do ambiente que descrevem."
A publicação de Vidas Secas, em 1938, assombrou a crítica e reforçou a importância de Graciliano Ramos, cuja presença na literatura brasileira já estava definitivamente marcada desde 1934, com o lançamento de São Bernardo. "Comedido, enxuto, implacável consigo mesmo, direto na forma, Graciliano era um ousado de porte e viria, pelo talento e pela contundência, revelar ao País, com força irrespondível e nunca demagógica, a consciência da miséria e atirar de frente, às chamadas elites, a notícia funda da existência de brasileiros de 'vidas secas'", testemunhou o também escritor João Antônio.
Além de exímio observador (seus relatórios quando prefeito de Palmeira dos Índios tornaram-se notórios pela ironia e precisão na descrição das mazelas locais), Graciliano sentiu na própria pele o efeito das injustiças sociais. Ele foi preso em Maceió na grande repressão que se seguiu ao movimento comunista de 1935. Detido, viajou para o Rio, num porão de navio, ao lado de outros suspeitos.
Ficou na prisão, numa primeira fase de detenção ainda amena, até ser transferido para a Ilha Grande, onde sobreviveu em condições sub-humanas, sem acusação formalizada ou prisão decretada. Seu calvário durou exatos dez meses e dez dias, até ser libertado, por determinação do mesmo governo que o havia detido ilegalmente. A experiência inspirou Memórias do Cárcere, publicado postumamente em 1953.
"É seu único livro não ficcional, embora o estilo esteja sempre presente", nota Hatoum. "É incrível como Graciliano consegue descrever bem qualquer personagens em apenas três ou quatro linhas. Ali, ele diz verdades sem autoindulgência. Aliás, sempre admirei sua autocrítica - dizia, por exemplo, não ter apreço por Caetés e Angústia. Graciliano tentava se diminuir até chegar ao mesmo status de seus personagens miseráveis."
Hatoum pretende fazer uma palestra breve, fiel ao homenageado cuja prosa era seca, descarnada, sem um único grama de gordura. A emoção, em Graciliano, vem justamente desse despojamento radical na forma, acompanhado da densidade de conteúdo. É o que se verá na Flip com Milton Hatoum.
Fonte: O Estado de S. Paulo / Caderno 2
Nenhum comentário:
Postar um comentário