- O Globo
Nos recentes distúrbios no Espírito Santo, algo me impressionou especialmente: um carro de som rodando pelas ruas desertas tocando a música “Imagine”, de John Lennon, e sendo aplaudido das janelas pelos moradores amedrontados. Era uma conjuntura de violência e terror, e pelas ruas ecoava uma canção imaginando a paz entre todos os povos. Interessante a trajetória dessa música pelos tempos, como sobrevive como uma utopia nas ruas de Vitória. E como a realidade se distancia do sonho de John Lennon e de milhões de pessoas no mundo. Difícil imaginar que não exista um inferno sob nós se da própria superfície da Síria chegam imagens tão trágicas. Difícil imaginar que não existam países com a explosão dos nacionalismos, a começar pelos Estados Unidos.
A performance de Trump aumenta a instabilidade no mundo. Na semana passada, inventou um atentado terrorista na Suécia. A resposta dos suecos foi bem-humorada: um ex-primeiro-ministro perguntou a Trump pelo Twitter o que ele andava fumando. De qualquer maneira, uma informação dessas na boca de um presidente dos Estados Unidos trouxe desgaste à imagem da Suécia, um país que absorve os imigrantes com generosidade. Posso dizer com experiência própria, pois vivi lá, precisamente entre imigrantes. Ao mesmo tempo em que Trump mostra seu desequilíbrio, outros sinistros personagens se movem no cenário mundial.
Assistimos ao vivo na tevê ao envenenamento de Kim Jong-nam, o irmão do ditador norte-coreano, Kim Jong-un. Vimos a mulher se aproximar, envolvê-lo com um lenço e, em seguida, o homem batendo com as mãos no rosto, aflito, tentando explicar o que houve. Morreu logo depois. O veneno presente no tempo dos Bórgias ainda é usado como arma pelo estado. O ex-espião russo Alexander Litvinenko foi assassinado com uma xícara de chá em Londres. No chá havia polônio 200, uma substância radioativa, usada em reatores nucleares. Alexander levou tempo para morrer. Os norte-coreanos usaram algo quase instantâneo.
Neste mundo mergulhado em violência é cada vez mais difícil ignorar o inferno. O articulista Ishaan Tharoor, do “Washington Post”, mostra que, ao mesmo tempo em que Trump mencionava um atentando inexistente na Suécia, um atentado real acontecia no Paquistão, matando 73 pessoas. Foi uma explosão realizada por um membro do Exército Islâmico contra um templo sufi. Os sufis são de um ramo do próprio islamismo. Intelectualizados, poéticos, com profetas peregrinos, sábios de pé no chão, os sufis são “tudo o que o Estado Islâmico odeia”, ele conclui.
Os sufis são sonhadores e, ao lembrar do carro de som nas ruas de Vitória, pensei: os tempos não estão nada bons para os sonhadores. Como em certo momento, os tempos também não foram bons para o próprio John Lennon. Mas, ainda assim, a canção “Imagine” sobrevive porque, conforme se viu em Vitória, quanto maior a dificuldade mais temos vontade de cantá-la.
No Brasil, somos forçados a fazer uma espécie de corte nos sonhos, uma equivalência simbólica ao corte nos gastos. No entanto, é possível sonhar, sobretudo agora. É uma conversa de réveillon que agora tem um outro sentido prático: o ano começa realmente depois do carnaval. E 2017 será vital para se achar um novo caminho que nos tire dessa área de instabilidade, crise social, desemprego, violência crescente e sistema político vivendo num mundo paralelo. O ato inaugural do ano será a quebra do sigilo das delações de 77 funcionários da Odebrecht. Depois da tsunami, será possível recolher os cacos e reconstruir o sistema político.
A tsunami atinge vários países do continente. Mas é no Brasil que tudo está sendo investigado, foi aqui que o sistema de corrupção foi instalado e exportado como um produto nacional. Muitos temem que a sacudida no universo político comprometa a retomada econômica. Acho que são complementares. De que adianta chegar na frente com mais empregos, um pouco mais de dinheiro no bolso e com a mesma farsa política dominando o país? Existem muitos projetos em gestação, muitos sonhos na gaveta. Eles dependem de uma estabilidade que nos dê alguma confiança no país, como já tivemos lá atrás, com a conquista de eleições diretas para a presidência. Do governo Collor para cá constatamos que eleger um presidente pelo voto direto não é tudo. Será necessário construir uma atmosfera política em que o presidente possa se mover com decência. Uma atmosfera que reduza a distância abissal entre sociedade e representantes pagos por ela.
Tudo acaba na Quarta-feira de Cinzas. Mas tudo começa também depois dela. Nada melhor que circular o carro de som tocando “Imagine”, mesmo sabendo que a realidade vai contemplar apenas uma fração mínima de nossos sonhos.
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