- O Estado de S.Paulo
A revolta e o rechaço unem duas pontas distantes num combate sem tréguas às reformas
Antes divisor de águas na esquerda e mais recentemente um tema capturado por liberais de todos os matizes, o apelo às reformas sofreu um deslocamento incontestável. Após o fracasso do “comunismo histórico”, as esquerdas fragilizaram-se e o liberalismo tornou-se a nova religião civil. O aprofundamento da crise fiscal favoreceu essa nova posição do liberalismo. Até quando isso vai durar não se sabe e ambos podem naufragar nas águas volumosas da transformação epocal em curso. É um desafio para a política, que lida com o contingente, embora também lhe seja próprio o esforço de fazer previsões.
No entanto, a identificação correlata a esse deslocamento não produziu uma renovação significativa na noção de reformismo, sempre rejeitado em latitudes como as nossas. Em função da vitória da revolução cubana de 1959, o reformismo tornou-se um anátema nas esquerdas latino-americanas e, mesmo hoje, nem sequer é considerado como parte do conjunto de culturas políticas que abrigamos entre nós. À direita as reformas são, em geral, reativas, se não reacionárias, enquanto na miríade de liberais as reformas não buscam nem organicidade nem projeção histórica. São “curativas” ante os desequilíbrios diagnosticados, embora isso não seja pouco. Mas trata-se de um reformismo que dispensa uma visão minimamente elaborada da sociedade que se almeja.
Fala-se muito em reformas, como a previdenciária e a tributária, por exemplo. Mas sem apoio da sociedade não se consegue estruturar um movimento em favor delas. Em passado recente vivemos um arremedo de reformismo, que não pode sequer ser chamado de ensaio, uma vez que nenhuma reforma digna do nome foi implementada. O primeiro caso é ilustrado pelo atual governo, de Michel Temer, e o segundo, pelos governos do lulopetismo. Mas o problema vem de longe.
Nos séculos 19 e 20 a esquerda se dividiu, de forma esquizofrênica, opondo reforma à revolução. Quando admitiu o lugar das reformas em suas estratégias, cujo horizonte mais visível eram os programas de estatização da economia, revelou que ainda concebia a proposição de reformas como antessala da revolução. Os políticos e ideólogos de esquerda que haviam aderido ao sistema da democracia adotavam, em geral, uma espécie de visão revolucionária das reformas. Foi o que se passou tanto com a social-democracia europeia (até o congresso de Godesberg de 1959, quando abandonou o marxismo) quanto com Salvador Allende, no Chile, entre 1970 e 1973. Não à toa, alguns analistas irão qualificá-lo ex post como um “reformista revolucionário”. O fato é que, mesmo com o fim do “comunismo histórico”, do fracasso de Cuba e da tragédia da Venezuela, a sombra da revolução paira sobre a esquerda, fazendo com que ela não tenha claro quais reformas propor e como transformá-las num feixe de referências para sua identidade como sujeito político reformista.
Outro descompasso que assola a esquerda latino-americana, em particular a brasileira, é o de ainda tomar o espaço nacional como referencial exclusivo para elaborar sua perspectiva de ação e seu futuro. Tais esquerdas concebem o “nacional” como ponto de partida e ponto de chegada de suas estratégias em pleno século 21 e em meio à globalização e à revolução tecnológica, que incide de maneira transformadora sobre os espaços econômicos mundiais. No caso brasileiro, defenderam o retorno ao nacional-desenvolvimentismo, acreditando que a partir dessa estratégia seria possível adubar o solo em torno do qual a nossa cultura popular se tornaria um elemento de convergência das supostas “tradições participativas brasileiras”. Nessas “tradições” o reformismo não comparece, nem mesmo aquele expresso no reformismo social do trabalhismo brasileiro. Fica claro, então, que os limites fatais do petismo não derivaram de erros de orientação supostamente premidos por conjunturas difíceis, mas, sim, de concepções que descartaram o reformismo como identidade e as reformas como pautas fundamentais. O suposto reformismo do PT não foi apenas fraco, foi anacrônico e lacunar.
O movimento democrático avançou muito no curso da redemocratização do País, mas formou poucas lideranças novas que o representassem e liderassem reivindicações de caráter reformista em diversos planos. Mais grave do que isso, uma parte dele recusou a lógica dos “construtores de escadas”, preferindo ainda a retórica do “assalto ao céu”, mesmo que tal fabulação se processasse nos quadros da democracia, que tem seus pesos e contrapesos. Por conta disso, o que se vê são jovens cada vez mais frustrados e que só veem possibilidade de participação nos espaços da micropolítica ou se deixam enredar pela antipolítica, que muitas vezes tece em seus espíritos e práticas uma mescla estranha de ódio, revolta e hedonismo individualista.
Haveria que superar conceitos e preconceitos nesta hora e pensar no reformismo como uma estratégia ampla e plural que abrigaria ações incrementais de mudança, sempre no interior dos marcos da democracia. O reformismo trava uma árdua batalha para renovar a si mesmo em meio a ataques do maximalismo de direita, que empastela tudo como sendo “comunista”, e daqueles que, afirmando o caráter histórico da grande transformação como uma época de transição, advogam por uma ruptura com a chamada “lei dos consensos”, que supostamente bloqueia a democracia. Recentemente, foi esse o fulcro do embate eleitoral nos Estados Unidos, na Alemanha e na Itália, que resultou em maiores ou menores derrotas do reformismo.
Revolta e rechaço unem de maneira funcional, mas pouco lógica, duas pontas distantes num combate sem tréguas ao reformismo. E este, por sua vez, deverá jogar sua sorte na sua capacidade de projetar transversalidades programáticas voltadas para as respostas exigidas por uma sociedade globalizada e em transformação permanente. É ainda uma luz para uma história que não está finalizada.
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* Alberto Aggio é historiador, professor titular da Unesp
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