- O Globo
Para enfrentar a crise ambiental, não bastam a cidadania e a democracia, inventadas para administrar cidades. Será preciso criar um sentimento de “planetania”, que vá além da cidadania, e uma prática de “humanocracia”, que vá além da democracia
Dificilmente um prefeito convence seus eleitores a elevar hoje o preço da gasolina, para evitar que o nível do mar suba no final do século. Ainda que tivessem solidariedade com as próximas gerações, os eleitores sabem que o problema climático é planetário, não é provocado apenas pelos carros de sua cidade.
Com seus interesses locais e visão de curto prazo, o eleitor de um país não representa a humanidade, de hoje e do futuro. Promessas de emprego, renda e consumo no presente representam melhor a vontade dos eleitores do que a ideia de salvar a Terra no futuro. Por isso, quando os governantes elaboram pactos internacionais, eles têm dificuldades em ratificar e cumprir essas decisões por seus eleitores, na hora em que os sacrifícios ficam conhecidos.
O mesmo ocorre com outros problemas do mundo global, como a imigração. O fechamento de fronteiras atrai mais apoio do que a proposta de aceitar imigrantes. Os eleitores não gostam de sacrifícios para proteger o meio ambiente, nem medidas de abertura de fronteiras para receber imigrantes que vão ocupar suas ruas, seus empregos, suas escolas. Para o eleitor, “nós” representa a família, a cidade ou o país, não a humanidade e o planeta.
Daí a dificuldade em obter simpatia popular para acordos como de Paris, sobre meio ambiente, e o de Marrakech, sobre migração, assinados por presidentes nacionais que serão substituídos por novos presidentes, quase sempre com ideias contrárias, quando os eleitores elegem populistas nacionalistas. A democracia, nacional e imediatista, não tem visão de longo prazo, nem é solidária internacionalmente: não é humanista.
Mesmo autores que falam dos riscos da democracia analisam a fragilidade do regime democrático na ótica dos problemas internos dos países, e não pelo fato de que a democracia não oferece solução para os problemas contemporâneos, globais e de longo prazo. Para estes autores, os problemas da democracia decorrem da maneira como líderes e partidos agem em suas disputas internas; não porque o Planeta e a Humanidade se transformaram em temas políticos, não mais apenas filosóficos, ainda que os eleitores não captam o novo sentimento e a nova lógica. A democracia ficou atrasada em relação aos avanços tecnológicos e sociais em escala global. Os limites nacionais das regras democráticas não permitem cuidar, de maneira plena, dos limites da ecologia, nem da expansão da migração.
Por isso, o debate político não está mais entre as velhas “direita” e “esquerda”, mas entre utópicos humanistas e populistas pragmáticos. E estes tendem a ganhar, até quando a pedagogia da catástrofe transformar o eleitor provinciano em um humanista. Mas quando isto acontecer, já pode ser tarde.
Para enfrentar a crise ambiental, não bastam a cidadania e a democracia, inventadas para administrar cidades. Para cuidar desse Novo Mundo será preciso criar um sentimento de “planetania”, que vá além da cidadania, e uma prática de “humanocracia”, que vá além da democracia. Mas o futuro visível não nos permite prever um eleitor globalizado em uma democracia planetária. A “humanocracia” vai exigir respeitar o voto do eleitor local e imediatista, mas sob um escudo humanista, contando com valores éticos universais que pairem acima das decisões eleitorais nacionais e imediatistas: o equilíbrio ecológico, a sobrevivência das espécies, a sustentabilidade do processo produtivo e de consumo, a solidariedade humana, independentemente da nacionalidade.
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Cristovam Buarque é senador (PPS-DF)
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