O cientista político Steven Levitsky diz que o aumento da impopularidade de Bolsonaro preserva as instituições
Thiago Prado / Revista Época
“Sempre que presidentes com instintos autoritários são eleitos, a democracia está em risco.
Mas a inépcia de Bolsonaro e o crescimento de sua impopularidade ajudam a proteger a democracia. Ele acaba sendo menos perigoso com a aprovação atual”, avaliou Levitsky
Steven Levitsky analisa Bolsonaro No segundo semestre do ano passado, o livro Como as democracias morrem, de Steven Levitsky, professor de ciência política na Universidade Harvard, tornou-se um best-seller e a principal referência acadêmica usada por aqueles que temiam os efeitos da vitória de Jair Bolsonaro na eleição presidencial. Ao longo de 272 páginas, Levitsky e seu colega Daniel Ziblatt defendem a tese de que os riscos para os sistemas políticos atuais não são mais os tradicionais golpes de Estado com uso de armas e fechamento do Congresso, mas sim os ataques sutis e sistemáticos contra as instituições — mecanismo que estaria sendo usado nos últimos anos por governos como o de Donald Trump, nos Estados Unidos, Viktor Órban, na Hungria, e Recep Tayyip Erdogan, na Turquia.
Em outubro do ano passado, às vésperas do segundo turno das eleições, Levitsky tratou de incorporar Bolsonaro a seu seleto grupo de autocratas do século XXI. Em um artigo para o jornal Folha de escreveu que o então candidato do PSL era uma séria ameaça à democracia brasileira e que, caso eleito, poderia prejudicar as instituições assim como fez Hugo Chávez na Venezuela. Bolsonaro levou a melhor contra Fernando Haddad (PT) e acaba de completar seis meses de governo. O professor exagerou ou de fato há riscos pairando sobre Brasília?
Durante uma hora de conversa por Skype, Levitsky teve o cuidado de mostrar que vem acompanhando o turbilhão de notícias que brotam do Palácio do Planalto desde janeiro. Está se preparando para uma mesa na Bienal do Livro no Rio de Janeiro, em setembro. Ele sabe da ascendência dos militares no Executivo federal (“Não acho bom. A participação na política não é a função primordial das Forças Armadas em uma democracia, mas sim a defesa das fronteiras e da segurança nacional.”) Sabe também das suspeitas envolvendo Fabrício Queiroz e de sua proximidade com policiais militares ligados a milícias (“Não sei se Bolsonaro tem envolvimento, mas pessoas de seu entorno certamente sim.”) Levitsky só se agitou quando perguntei se suas análises não acabam sendo mais condescendentes com a esquerda do que com a direita. “Isso é ridículo, reflexo de como vocês estão polarizados. Pergunte ao pessoal do PT o que acham de mim. Agora só porque critico Bolsonaro sou comunista?”, rebateu, lembrando, por exemplo, que discorda da narrativa petista de que o impeachment de 2016 foi um golpe.
A provocação tem como base alguns critérios que o próprio Levitsky usa em seu livro para classificar um político como autoritário. Um exemplo de Como as democracias morrem: o alerta deve soar quando alguém negar a legitimidade do oponente e das regras do sistema democrático. De um lado, Bolsonaro sempre desacreditou das urnas eletrônicas e falou em discurso de campanha que os marginais vermelhos seriam banidos da pátria. O PT, por sua vez, chamou frequentemente seu oponente de fascista e, em um discurso de 2015, Lula chegou a defender que João Pedro Stédile, do Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra, colocasse seu exército nas ruas para defender o governo. “O ponto é que o PT passou a ser mais agressivo porque está convencido de que Dilma foi tirada do Poder ilegitimamente. O partido também está certo de que Lula ficou de fora da eleição do ano passado pelo mesmo motivo. Isso faz com que o PT se radicalize mais. Agora, basta olhar o comportamento efetivo de Lula como candidato em todas as eleições que disputou e dentro do governo. Não dá para comparar com Bolsonaro”, afirmou.
Eu o provoquei mais uma vez: a corrupção descoberta em governos petistas também não faz a democracia morrer? “Sim, claro. Importante dizer que a corrupção incluiu o PT, o PSDB e todos os partidos. Na verdade, os últimos anos mostraram que o PT é igual aos outros. A corrupção é horrível e pode acabar com a democracia de várias maneiras, quando é usada para influenciar o resultado de eleições e para distorcer a competitividade entre os candidatos. Também é muito ruim isso que está acontecendo agora no Brasil, quando os cidadãos começam a se convencer de que a democracia não é boa, que é um desastre que cria mais problemas do que soluções.”
Levitsky afirmou continuar achando que Bolsonaro é um risco para a democracia brasileira, mas disse que as últimas pesquisas de avaliação do desempenho do governo ajudam a conter as tentações autoritárias. Segundo o Ibope do fim do mês passado, o percentual de pessoas que considera o governo ótimo ou bom já está igual ao que o avalia como ruim ou péssimo (32%) — em janeiro, a percepção positiva da administração estava em 49%. “Sempre que presidentes com instintos autoritários são eleitos, a democracia está em risco. Ele já deixou claro em vários momentos que não está comprometido com as regras da democracia liberal. Mas sua inépcia e o crescimento de sua impopularidade ajudam a proteger a democracia. Ele acaba sendo menos perigoso com a aprovação atual do que se alcançasse 75% como (Alberto) Fujimori e (Rafael) Correa”, disse Levitsky, referindo-se aos ex-presidentes do Peru e do Equador.
O professor se arriscou a explicar por que a popularidade de Bolsonaro está caindo: “O Brasil tem uma combinação difícil de crise econômica, escândalos de corrupção e violência em alta. Reconheço que até o melhor presidente do mundo teria dificuldades de governar o país atualmente. Mas a questão é que Bolsonaro não tem habilidade política, diz coisas estúpidas muitas vezes e seu ministério é repleto de pessoas sem experiência”.
Coloquei Levitsky a par de agendas em que o Congresso e o Supremo Tribunal Federal impuseram derrotas a Bolsonaro até agora. Boa parte delas — como a flexibilização da posse e do porte de armas e a extinção de conselhos com representantes da sociedade civil — devido ao costume presidencial de querer fazer mudanças com canetadas, sem passar pelo crivo de deputados e senadores. “Não é incomum que presidentes sem maioria consolidada se voltem para os decretos.
Até lideranças democráticas às vezes fazem isso. O que resta é ver se o conflito com o Congresso vai aumentar. Se isso acontecer, eu ficaria preocupado, porque, ao contrário de Fernando Henrique Cardoso, Lula, Dilma Rousseff, José Sarney e até mesmo Fernando Collor, Bolsonaro não dá a mínima para as instituições democráticas. Ele mesmo pediu o fechamento do Congresso no início dos anos 90”, afirmou Levitsky, que também disse não ver como positivo o apoio do presidente a manifestações favoráveis a seu próprio governo.
Mas, afinal, ter as pessoas nas ruas, interessadas por política, não é uma demonstração de democracia pujante? “Em geral, apenas autocratas mobilizam protestos pró-governo. Foi o que (Juan Domingo) Perón, (Hugo) Chávez e (Benito) Mussolini fizeram. E, assim, os ataques verbais ao Congresso e ao Supremo Tribunal Federal tornam-se frequentes, o que precede os ataques físicos. Mas, novamente, eles eram muito populares, e Bolsonaro não é. Se partir para o ataque de vez, pode falhar, como Jorge Serrano, na Guatemala, em 1993, ou Lucio Gutiérrez, no Equador, em 2005”, disse, citando dois políticos que acabaram renunciando após crises com outros Poderes.
Lembrei de uma tese defendida pelo cientista político Fernando Schüler que afirma que a democracia é “uma máquina de moderar posições” e questionei se a democracia brasileira não está dando provas claras de funcionamento nos últimos seis meses. Usei a expressão “check and balances”, os termos usados na política americana para definir o sistema de freios e contrapesos que modulam as relações entre os três Poderes. “O Brasil construiu um consenso nos últimos 20 anos de que, para governar, é preciso construir uma coalizão, só que Bolsonaro recusa a prática. Não há bons sinais no Brasil nesse sentido, mas a democracia de vocês não é simples de ser aniquilada, as instituições são fortes”, afirmou Levitsky.
Nas últimas semanas, o assunto mais debatido no país foi a divulgação das conversas, pelo site The Intercept Brasil, entre o ministro da Justiça, Sergio Moro, e procuradores responsáveis pela Operação Lava Jato em que combinavam atuações no caso envolvendo o ex-presidente Lula, o que gerou mais argumentos para um pedido de suspeição do então juiz no Supremo Tribunal Federal. “Se fosse nos EUA, certamente Lula já estaria solto. Não porque ele é inocente, é improvável que seja. Mas um juiz tem de ser independente, não pode atuar colaborando com o Ministério Público.”
Levitsky está longe de ser um lavajatista de carteirinha, como os manifestantes que fizeram bonecos de Sergio Moro vestido de Super-Homem. “A Lava Jato foi boa para a democracia, sem dúvida. Mas há um risco. Se o processo foi muito politizado, e há evidências agora de que foi, isso pode ser perigoso”, disse o professor. Para depois completar: “Toda sociedade busca super-heróis. Como toda a classe política tem as mãos sujas, não é surpresa que, quando encontrem alguém com as mãos limpas, o tratem dessa forma. Mas, não, ele não é um super-herói”.
Para finalizar a conversa, perguntei sobre a derrota eleitoral recente do líder turco Erdogan — um dos autocratas criticados por Levitsky — na eleição municipal de Istambul. “Uma eleição não prova nada. Em 1995 a oposição a Fujimori também ganhou a eleição em Lima, no Peru”. E Trump, outro citado, ameaça tanto assim os EUA, mesmo depois de quase três anos de governo? “Ele coloca em dúvida uma instituição-chave para as democracias, que é a imprensa. Sempre acha que estão conspirando para derrubá-lo. E conseguiu fazer com que boa parte dos republicanos acredite nisso.”
Rebati lembrando que a era Trump, pelo menos para a audiência da imprensa americana, tem sido ótima — Washington Post e New York Times estão batendo recordes e mais recordes de assinaturas digitais. “Ser bom para as vendas não quer dizer que seja bom para a democracia”, encerrou.
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