sábado, 13 de junho de 2020

Ascânio Seleme - O golpe impossível

- O Globo

Em “Como as democracias morrem”, o autor Steven Levitsky, professor de Ciência Política da Universidade de Harvard, aponta quatro indicadores que definem líderes que resolvem adotar este caminho

Em “Como as democracias morrem”, o autor Steven Levitsky, professor de Ciência Política da Universidade de Harvard, aponta quatro indicadores que definem líderes que resolvem adotar este caminho. Primeiro, eles rejeitam as regras democráticas e constitucionais; em seguida, tentam restringir as liberdades civis de rivais políticos e da imprensa; depois, negam a legitimidade de opositores; e, finalmente, encorajam ou toleram a violência. Jair Bolsonaro se encaixa nos quatro, segundo o próprio Levitsky em entrevista ao “Correio Braziliense”. O problema é que ele não tem as ferramentas indispensáveis para tocar estes indicadores adiante. Faltam-lhe apoio popular e maioria no Congresso.

Pela via institucional, Bolsonaro não conseguiria subverter a ordem democrática. Não aprovaria um reforma do Judiciário, por exemplo, para construir um Supremo ao seu gosto. Não aprovaria uma reforma política para reestruturar os partidos de acordo com suas ideias. E sequer conseguiria discutir uma reforma administrativa por não ter o aval dos servidores, embora disponha de mais de 20 mil cargos de livre nomeação que já distribuiu entre aliados, sobretudo militares (das Forças Armadas, das PMs e dos Bombeiros) e seus familiares. Sem apoio popular ele também não prosperaria. Nem o cercadinho do Alvorada Bolsonaro conseguiu manter intacto. Outro dia ouviu-se dali uma mulher dizer que ele traiu a nação.

Os gestos mais obtusos do presidente são rechaçados publicamente e caem. Caso da MP que dava poder ao inacreditável Abraham Weintraub de nomear reitores nas universidades federais. Por isso, os caminhos apontados pelo professor de Harvard não conduziram a um golpe no Brasil. O desejo de Bolsonaro de desmantelar a ordem constitucional só se daria pela infâmia, e seria assim:

A infâmia improvável

O chefe dos funcionários da portaria Câmara dos Deputados jamais se esquecerá do barulho dos vidros estilhaçados pelo primeiro tanque na invasão da casa através da entrada da chapelaria. Com o cheiro do óleo diesel dos motores dos tanques subindo para o salão verde, os presidentes Rodrigo Maia e Davi Alcolumbre foram presos pelo coronel de infantaria mecanizada destacado para a operação. Diversos parlamentares, de todos os partidos, também saíram algemados e foram levados para o 1º Regimento de Cavalaria de Guardas, ao lado do Parque Nacional de Brasília.

Ao Supremo Tribunal Federal foram enviados muito mais do que um jipe, um cabo e um soldado. O prédio foi cercado por pelo menos duas companhias de infantaria. Não houve depredação como no Congresso, mas também ali prisões foram feitas sem nenhum amparo legal. Todos os ministros, inclusive o presidente Dias Toffoli, foram encarcerados no Batalhão Pioneiro, o 1º BPM, no final da Asa Sul.

No Rio e em São Paulo, jornais e emissoras de TV e rádio foram ocupados por soldados armados de fuzis e metralhadoras. A ordem era quebrar quem opusesse qualquer resistência. E foi isso o que aconteceu. Vários veículos foram empastelados pelos ocupantes. Jornalistas foram agredidos e tiros foram disparados. O saldo da barbárie ainda não se conhece. No Rio, dezenas de repórteres e editores foram recolhidos ao Batalhão de Polícia do Exército, na Rua Barão de Mesquita, na Tijuca. Em SP, levados para o Comando da 2ª Região, na Avenida Sargento Mário Kozel Filho.

As universidades também foram tomadas por tanques. Reitores e diretores de departamentos foram imediatamente presos. Há professores e alunos entre os presos e desaparecidos. Sabe-se que uma ala da Escola Militar da Praia Vermelha foi esvaziada para recolher os detidos nas universidades. No Rio e em Brasília, foram ocupadas ainda as sedes da Ordem dos Advogados do Brasil e da Associação Brasileira de Imprensa. Sindicatos em todo o país estão sendo fechados.

As gigantescas manifestações de rua que se seguiram ao golpe foram reprimidas brutalmente por militares e milicianos infiltrados. Pessoas relataram ter ouvido tiros e visto corpos estendidos no asfalto. Também há relatos de agressões física e tortura de presos em alguns quartéis. É o método que os militares adotaram para tentar descobrir o paradeiro de pessoas que consideram inimigos foragidos, embora sejam apenas estudantes, professores, jornalistas, advogados. O país está chocado com tamanha infâmia.

A verdade incontestável

Alguém acredita que tamanha barbaridade poderia ser cometida pelos atuais comandantes militares? Talvez um ou outro. Alguém imagina que as Forças Armadas tomariam parte de uma brutalidade desse tamanho em nome de Jair Bolsonaro e de seus três zeros? Poucos. Alguém duvida de que este é o sonho do presidente? Ninguém.

O dinheiro não é Problema
É verdade que não havia outro caminho que não fosse o que previsse ajuda do governo federal aos mais pobres durante a epidemia que, além de vidas, ceifa empregos e fontes alternativas de renda em todo o país.

Nenhum mérito, portanto, na liberação de verbas para este fim. Era uma estratégia indispensável para a sobrevivência de milhões de brasileiros, contra a fome e o desespero.

Agora, criar uma marca, a Renda Brasil, ampliar seu alcance e estender por mais tempo seus efeitos têm outro nome.

Trata-se de uma tática de sobrevivência política do presidente. Jair Bolsonaro quer estreitar vínculos com os mais vulneráveis para acenar com apoio popular se seu mandato vier a ser ameaçado pelo impeachment.

Até que enfim
Demorou, mas finalmente alguém foi ao cercadinho dos bajuladores do Palácio da Alvorada para dizer umas boas ao presidente. Foi engraçado ver a cara de tacho de Bolsonaro mandando a mulher que o chamou de traidor ir se queixar ao seu governador.

Aquele cercadinho só abriga aliados incondicionais de sua excelência, por isso foi inusitado ver sair dali um breve contraditório.

A coisa no lugar é tão descarada, que no início da semana, quando o presidente Jair Bolsonaro ouvia de seguidores da Região Norte propostas para aprovar a ocupação de terras indígenas, disse que não podia ser claro sobre a questão e acrescentou: “A imprensa está ouvindo, aí eu não posso ficar muito à vontade”.

Embaraço geral 1
O general Eduardo Pazuello, ministro interino da Saúde que embaraça o Exército brasileiro, recebeu, na semana passada, recado de superiores fardados de que o melhor a fazer é voltar para a caserna ou ir para a reserva.

Embaraço geral 2
Duvida-se no QG do Exército em Brasília que Eduardo Pazuello e Luiz Eduardo Ramos, ministros de Bolsonaro e ambos generais da ativa, sigam o exemplo do chefe do Estado Maior Conjunto dos Estados Unidos, Mark Milley, e peçam desculpas por terem apoiado os atos antidemocráticos realizados na Praça dos Três Poderes.

Historicamente, militares brasileiros não admitem que erram.

Mais fácil para os dois é a reserva. O ministro Luiz Eduardo Ramos já deu sinais nesse sentido.

‘Eu te amo, meu Brasil
Silvio Santos nem tenta esconder sua permanente sabujice. Desde os governos militares, seu programa dominical sempre foi reverencial ao presidente do momento.

Trata-se de um puxa-saquismo com objetivo de ganhar alguma coisa em troca.

Agora, com Jair Bolsonaro, foi ao Palácio algumas vezes e, anteontem, viu o genro virar ministro. Seu maior gol foi o seu canal de TV. Em um dos seus programas em 2006, Silvio Santos explicou como conquistou o seu canal.

Ele apresentava Ravel, da dupla que compôs “Eu te amo, meu Brasil”, e disse que o cantor foi um dos “propulsores” da sua emissora. “Ele trabalhou junto comigo para que conquistássemos o SBT. Eu e ele, durante muito tempo, andávamos juntos à procura de oficiais do Exército e de autoridades brasileiras para que eles nos fornecessem o canal”.

O apresentador ganhou o sinal no governo do general João Figueiredo, por isso foi à cata de oficiais do Exército para buscar apoio.

Reino da ignorância
A excelente série sueca “Califado” em cartaz na Netflix, mostra como é fácil conquistar corações e mentes com mentiras e meias verdades.

Mais simples ainda se os alvos das fakes forem jovens de comunidades mais pobres e se os argumentos de convencimento envolverem poder e religião.

Em “Califado”, três meninas são aliciadas para se juntarem ao Estado Islâmico com promessas falsas e imagens de hotéis luxuosos onde se hospedariam ao chegarem na cidade de Raqqa, na Síria.

Bons documentários sobre o tema já foram produzidos, inclusive pela GloboNews.

Na série, três jovens de 13 a 15 anos abandonam suas famílias e são levadas para a Síria acreditando estarem indo para um paraíso. Se na Suécia, fake news funcionam assim, imaginem no Brasil.

Pai de peixe
Helder Barbalho ainda terá chance de se explicar sobre a ação que apura desvios de R$ 50 milhões na compra de respiradores para capacitar hospitais do Pará no combate à pandemia de coronavírus.

Enquanto não se justificar, os R$ 25 milhões que tinha em conta estarão bloqueados pela Justiça.

Ouviu-se poucas vozes de políticos paraenses em apoio a Helder. Seu pai, o senador Jader Barbalho, ex-governador e ex-ministro, envolvido em escândalos na Sudam, no DNER, na Petrobras e na Usina de Belo Monte, preferiu se calar.

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