Fora o imprevisto, sempre uma possibilidade face a insânia que medrou livre nos últimos quatro anos, pode-se, ao fim e ao cabo, realizar uma celebração cívica para o recomeço da vigência dos rituais próprios à democracia. Mas que ninguém se engane, finda a festa, a inana dos conspiradores antidemocráticos seguirá seu curso, em certos setores ainda mais enraivecida pelo infortúnio dos seus propósitos, e que têm em mãos posições nos poderes legislativos e nas máquinas estaduais de várias cidades e estados, além do fato de terem expressão partidária.
A imposição do governo democrático não
deverá ser obra fácil, vai demandar tempo e muito jogo de cintura por parte da
coalizão que assume agora as rédeas do Estado, que, aliás, não lhe tem faltado
desde o início da campanha eleitoral, a própria obra da composição dos
ministérios do novo governo tão ampla quanto possível atesta que não se ignora
os riscos da situação presente.
À frente do governo que começa tudo é novo,
em particular no cenário internacional onde
se intensificam as disputas geopolíticas entre as grandes potências,
assim como na nossa demografia política em que os estados do centro-sul,
tradicionalmente hegemônicos, têm seu papel diminuído pela emergência dos
nordestinos, evidente na composição ministerial. Experiências em administrações
passadas, no caso consistem em apenas credenciais válidas para a seleção dos
novos dirigentes dos aparelhos públicos, mas por si sós não afiançam aos seus
dirigentes o êxito em suas intervenções.
Não se trata simplesmente de repor o que
foi destruído pelo regime anterior, conquanto isso importe, mas de buscar a
inovação num país que deprimiu a atividade científica e ignorou a indústria,
convertendo-se anacronicamente à situação de exportador de commodities,
trocando o eixo urbano-industrial, ponto de partida da sua bem-sucedida
modernização, pelo agrário, incapaz, mesmo que se releve o papel destacado que
vem cumprindo, de edificar as bases para a construção do futuro.
Fora da questão social, onde se fizeram
boas opções, procura-se em vão, nos quadros ministeriais selecionados, os
portadores de novas promessas para um país com mais de duzentos milhões de
habitantes sedentos de novas oportunidades de vida. A timidez nessa busca
parece decorrer do receio de se incorrer na fórmula do
nacional-desenvolvimentismo, tornada pela pregação neoliberal estigma a ser
evitado como o diabo foge da cruz.
Esse mesmo receio é alimentado pela conjura
contrária às ações estatais no sentido de alavancar o desenvolvimento, outro
estigma a interditar a busca de inovações criativas para a mudança social. A
inércia que acometeu o país é fruto da ideologia neoliberal, reinante há
décadas nas elites reinantes, cevada, em grande parte, pelo fato de que as
orientações nacionais- desenvolvimentistas terem sido, entre nós, levadas a
cabo por regimes autoritários.
A dissociação entre nacional-desenvolvimentismo
e autoritarismo é, observando bem, mandamento constitucional ao afirmar que a
sociedade se deve pautar pelos ideais de justiça e solidariedade, plantas que
não nascem como mato no mercado e que demandam obras continuadas de jardinagem.
Cabe ao governo democrático que acabamos de conquistar exercer esses cuidados,
somente possíveis a ele se compreende que esta é uma missão a ser compartilhada
com a sua sociedade cível,
Na indústria da saúde, por exemplo, para a
qual estamos prontos para alçar voos ambiciosos, o agrupamento em redes dos
equipamentos já constituídos, dos centros de pesquisas universitários ou não,
contamos com uma base segura para sua alavancagem com recursos públicos e
privados. De outra parte, a valorização do sindicalismo, tal como em países
avançados, sobretudo na Alemanha, pode se converter em parceiro significativo
nas atividades produtivas, desde que seus estatutos legais prevejam suas formas
de participação. A engenharia institucional, sob o império de uma política
democrática, com os recursos humanos de que já dispomos, pode ser o instrumento
de concretização dos valores que consagramos em nossa Constituição em ruptura
com nossas tradições de exclusão.
*Luiz Werneck Vianna. Sociólogo, PUC Rio
2 comentários:
Bom artigo do Werneck como sempre. Quanto ao nacional-desenvolvimentismo só mesmo débeis mentais são contra isso. Lula está no caminho certo quando diz que quer que ricos paguem imposto de renda (de preferência progressivos para impedir a formação de bilionários e de favelas e moradores de rua) e pobres façam parte do orçamento. Só não entendi associar a deusa mesopotâmica Inana com os bolsonaristas. Li que ela é deusa do amor e da guerra. O boçal tem a ver com guerra, mas com o amor não tem nada.
Enfim,alguém que faz comentários com nome e sobrenome.
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