Por Paola de Orte, Especial para O Globo
Yuval Noah Harari, um dos maiores
pensadores da atualidade, diz que há risco de seu país, que completa 75 anos,
ser dominado por um fundamentalismo messiânico com impactos globais
Nesta semana, Israel comemora 75
anos de fundação — no calendário judaico, uma vez que a criação do país ocorreu
em 14 de maio de 1948 — vivendo um dos momentos mais críticos da sua História.
Para Yuval Noah Harari — um dos pensadores mais importantes da atualidade, o
autor dos best-sellers “Sapiens” e “Homo Deus” — há o risco de seu país virar
uma teocracia messiânica. E, como tem tecnologia nuclear, poder militar e
conhecimento tecnológico, os efeitos poderiam ser globais: “O que está
acontecendo aqui pode ter impacto direto em processos e eventos muito além das
fronteiras de Israel e até do Oriente Médio”, diz ele, sobre a proposra de
reforma do Judiciário de Benjamin
Netanyahu, que pode acabar com o controle sobre o governo e tem
gerado confrontos que estão afastando investimentos, gerando violência e
tornando a nação inviável.
Aos 47 anos, o pensador, que nasceu em
Qiryat Atta — cidade no Norte do país, entre Haifa e Nazaré — Israel pode estar
jogando fora uma história de conquistas importantes. Por isso, diz, muitos
lutam: “as forças seculares e democráticas em Israel estão fazendo tudo o que
podem para impedir esta catástrofe histórica e salvar a democracia israelense”.
O que a fundação de Israel significou para
o mundo?
O estabelecimento de Israel reparou uma enorme injustiça histórica: a perseguição às comunidades judaicas durante séculos na maior parte das regiões em que viviam, culminando com o Holocausto. Foi também parte do processo de colapso dos impérios europeus e do estabelecimento de Estados-nação independentes após a Segunda Guerra. Quando me pedem para refletir sobre o país em seu 75º aniversário, digo que é preciso julgar sua política em comparação com outros países fundados ao mesmo tempo. Assim, Israel é talvez o mais bem-sucedido em termos econômicos, de cultura e de tecnologia, e o incrível é que conseguiu isso apesar de condições muito difíceis.
Quais?
Durante a maior parte de sua existência,
Israel esteve em conflito mortal com a maioria de seus vizinhos. Mesmo agora,
muitos dos países da região se recusam a reconhecer seu direito de existir.
Outra coisa que foi difícil é que a maioria das pessoas eram refugiados. A
população judaica consistia em ondas vindas da Europa e também dos países do
Oriente Médio, depois de 1948. Elas não tinham língua ou tradições comuns,
exceto alguns aspectos da religião. A maioria não veio de países democráticos.
Mas conseguimos criar uma comunidade nacional e manter instituições
democráticas. Infelizmente, tudo isso agora está em perigo e é questionado pela
tentativa do governo de Benjamin Netanyahu de destruir os freios e contrapesos
democráticos e tomar para si um poder ilimitado [com a proposta de reforma do
Judiciário].
Qual foi o papel da religião na fundação do
país e qual é seu papel hoje?
Quando Israel foi fundado, foi influenciado
pela religião judaica e pela Bíblia, mas foi um movimento nacional secular, não
um movimento religioso, que prometeu liberdade religiosa e igualdade para todos
os seus cidadãos: cristãos, muçulmanos, ateus. Durante décadas, Israel esteve
dividido entre duas visões conflitantes de si mesma — seria uma democracia
secular ou uma teocracia messiânica? Agora esse conflito está chegando ao auge.
O governo de Netanyahu — que se baseia em uma coalizão de extrema direita de
forças messiânicas — está tentando destruir a democracia israelense. Se vencer,
se conseguir, transformará a natureza de Israel, do povo judeu e até da
religião judaica. O judaísmo israelense se tornará uma seita messiânica
intolerante que usa a violência para defender a supremacia judaica. Isso criará
uma divisão com comunidades judaicas mais liberais em outras partes do mundo, destruirá
a unidade do povo judeu, trará infâmia à religião judaica e incendiará todo o
Oriente Médio. As forças seculares e democráticas em Israel estão fazendo tudo
o que podem para impedir esta catástrofe histórica e salvar a democracia
israelense.
Israel ocupa um território onde vivem
milhões de palestinos que não votam. O país é uma democracia?
A democracia não é uma ou outra situação, é
um espectro. Israel está em algum lugar no meio, é uma democracia para judeus e
corre o risco de deixar de ser democracia para quem quer que seja, judeus ou
árabes. O país foi estabelecido em 1948 como um Estado democrático secular que
dava aos judeus perseguidos de todo o mundo um refúgio seguro, ao mesmo tempo
em que garantiria liberdade e igualdade para seus cidadãos não judeus. No
entanto, depois de 1967, a ocupação de milhões de palestinos e o projeto de
colonização puseram isso em questão. O projeto de colonização via Israel em
termos religiosos messiânicos, não como um projeto humano destinado a proteger
pessoas perseguidas, mas como um projeto religioso destinado a cumprir uma
promessa divina do deus Jeová. A ocupação minou a democracia de Israel, porque
nunca houve qualquer intenção de dar cidadania israelense e direitos iguais aos
habitantes palestinos dos territórios ocupados.
O que Netanyahu é para a História de
Israel?
Depende do que acontecerá nas próximas
semanas e meses, mas acho que entrará para a História como o homem que dividiu
o povo e a nação israelenses e talvez até o povo judeu. Essa é a missão de sua
vida há 20 anos. Ele construiu sua carreira política dividindo Israel por
dentro. É uma estratégia eficaz, o truque mais antigo: dividir para reinar.
Como viu a aproximação de Israel com o
Brasil no governo Bolsonaro?
Bolsonaro e Netanyahu são o mesmo tipo de
líder. Não sou especialista em política brasileira, mas, acompanhando, fiquei
com a impressão de que Bolsonaro é um político divisivo, que usa a mesma
estratégia de dividir para reinar e chegar ao topo.
Qual é o futuro da democracia israelense?
Isso depende das decisões e ações que
tomaremos nos próximos meses. O governo está tentando obter poder ilimitado
para si, desmantelar os freios e contrapesos democráticos e estabelecer uma ditadura.
O que limita o poder do governo? Em muitas democracias, existe um sistema de
freios e contrapesos que limita o poder do governo central: Constituição,
Câmara Alta, Parlamento, sistema federal. Em Israel, não temos essas coisas. O
único freio é a Suprema Corte. Agora o governo está tentando assumir o controle
e neutralizá-la. Se conseguir, o governo poderá aprovar a lei que quiser ou
interpretar as leis existentes como quiser. Poderia passar uma lei que tirasse
o direito de voto dos cidadãos árabes ou fechar os meios de comunicação
independentes.
Como?
O governo poderia aprovar a lei que quiser,
fraudar a eleição, se vir que vai perder. Pode impedir que os partidos de
oposição participem das eleições ou tirar o direito de voto das pessoas. Há
membros da coalizão que falam sobre tirar o direito de voto dos cidadãos
árabes. O perigo é que o governo tome para si esse poder ilimitado, o que
transformará Israel em uma ditadura. Isso terá consequências não apenas para os
israelenses, mas para toda a região. Israel mantém sob ocupação milhões de
palestinos. Por pior que seja a situação para eles sob um governo israelense
democrático, é provável que seja muito pior sob uma ditadura. Israel tem uma
das forças militares mais poderosas da região, tem capacidades nucleares e
armas cibernéticas para atacar qualquer lugar do mundo. Se você entregar esse
tipo de poder nas mãos de um governo autocrático e messiânico, as consequências
para todo o Oriente Médio podem ser desastrosas.
Israel é um país tão pequeno, por que o
resto do mundo deveria se importar?
Hoje, a democracia está ameaçada em todo o
mundo, e, na batalha pela democracia, qualquer derrota é perigosa e contribui
para a onda de autoritarismo. Mais do que isso, mesmo sendo um país pequeno com
uma população pequena, tem capacidades militares que poucos países ao redor do
mundo têm, é líder na área de alta tecnologia e, na área de armas cibernéticas
e tecnologia de vigilância, exporta tecnologias poderosas e potencialmente
perigosas para regimes ao redor do mundo. O que está acontecendo aqui pode ter
impacto direto em processos e eventos muito além das fronteiras de Israel e até
do Oriente Médio.
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