Folha de S. Paulo
Admite-se que em junho de 2013 'se chocavam
ovos de cobra e se teciam teias de aranha'
Em junho de 2013, a perplexidade quanto à real finalidade das
manifestações de som e fúria nas ruas adequava-se a uma estrofe do
rapsodo Ascenso Ferreira: "Riscando os cavalos! / Tinindo as
esporas / Través das coxilhas! / Saí de meus pagos em louca arrancada! – Para
quê? Pra nada!".
Dez anos
depois, sem que se esgote o assombro, admite-se que ali "se
chocavam ovos de cobra e se teciam teias de aranha" (Salmos, 140:3).
Perigosamente ambígua, a ebulição social da época presta-se a interpretações
diversas, mas ficou marcada a "arrancada" da internet como megafone
epidêmico.
De fato, numa perspectiva viável, o digital seria instrumento de uma irrupção epidêmica pouco visível. Etimologicamente, epidemia guarda o sentido de incidência próxima ("epi") sobre o povo ("demos"). Pode ser fala, influência, doença. Em princípio, portanto, algo físico. Mas a expressão "epidemia psíquica", do psicanalista Carl Jung, qualifica sonhos e fantasias individuais que refletiriam mutações sociais e tendências da vida inconsciente das nações. Para ele, o senhor da guerra e da morte na mitologia nórdica, Wotan, simbolizaria forças instintivas que encontraram expressão no nazismo.
Psicodinamismo é o nome desse fenômeno que,
embora derivado de indivíduos e grupos, presidiria a relações sociais mais
amplas e, mesmo, ao surgimento de mitos compensatórios de frustrações
coletivas. Explicaria a ebulição em movimentos de massa.
A coesão da sociedade brasileira sempre foi
reforçada pela similitude de hábitos e costumes, normatizados pela
hierarquização colonial e patriarcal. Mas racismo, machismo e mandonismo,
vetores desses protocolos sociais, perdem hoje força como mecanismos de
controle do ambiente. E, no apodrecimento da representação política, esquerda e
direita viram nomes de fantasia para clivagens existenciais mais profundas.
A base psicodinâmica para uma epidemia
psíquica desponta na formatação da vida pelo mercado, no desamparo
institucionalizado pelas políticas neoliberais. Aspecto relevante é o descaso
para com família e escola: perdem-se âncoras sociais, entre real e imaginárias,
na depressão que acomete a consciência apenas consumidora, sem abrigo na
política nem na teologia católica.
Da insatisfação coletiva tecida na teia de
aranha digital, desde 2013, continua a brotar o ressentimento que busca
baluarte (a sagrada família, supostamente ameaçada) e bode expiatório
(os costumes, a cultura). Mas com o abre-alas da dissonância cognitiva: a
linguagem que o cérebro encontra para processar o desconforto está na razão
algorítmica das redes, cujo único compromisso é a própria transmissão. É assim
que, por epidemia psíquica, se viraliza a "louca arrancada" para um "nada"
demencial.
*Sociólogo, professor emérito da UFRJ, autor, entre outras obras, de “Pensar Nagô” e “Fascismo da Cor”
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