É preciso sabedoria ao tirar proveito do avanço da China
O Globo
Investimento chinês bate recorde, e país
responde por 41% do superávit brasileiro. Risco é criar dependência
É crescente a importância global da China — e ela só
tende a aumentar com o isolacionismo dos Estados Unidos sob Donald Trump. É
essencial, portanto, que o Brasil tenha uma estratégia para lidar com seu maior
parceiro comercial, de que se torna a cada dia mais dependente como fonte de
investimentos e destino de exportações. Há, em virtude da guinada na política
externa americana, clara intenção chinesa de aprofundar as relações com países
latino-americanos. É uma situação que exigirá da nossa diplomacia sabedoria
para aproveitar as oportunidades e evitar as armadilhas.
Em 2024, o Brasil obteve superávit comercial de US$ 30,8 bilhões com a China (US$ 94,4 bilhões em exportações e US$ 63,6 bilhões em importações). Os investimentos chineses bateram recorde pelo quarto ano consecutivo, alcançando US$ 73 bilhões, segundo dados preliminares do Conselho Empresarial Brasil-China (CEBC). Confirmada a estimativa, os chineses estão em quinto lugar como investidores no Brasil, atrás de americanos, holandeses, franceses e espanhóis.
Formalmente, o Brasil evitou aderir à Nova
Rota da Seda, iniciativa lançada em 2013 para conectar a China a Ásia, Europa,
África e América Latina por meio de projetos de infraestrutura. Foi a decisão
acertada, pois evita atrito desnecessário com os Estados Unidos. E não tem
impedido investimentos no país. Ao contrário. Há pelo menos 137 projetos com
capital chinês no Brasil, como portos, estradas, usinas ou fábricas. Estão
concentrados nos setores de energia (45%), óleo e gás (30%), manufatura
(sobretudo automotiva), mineração, infraestrutura e agricultura.
O Grupo Cofco, de alimentos, já mantém no
Brasil instalações portuárias, unidades de processamento e armazéns. A empresa
expande no Porto de Santos seu maior terminal fora da China, investimento de
US$ 285 milhões para movimentar 14,5 milhões de toneladas por ano. “Queremos
aumentar nossa capacidade de produção, processamento e transporte para atender
mais produtores rurais e cooperativas”, disse em Xangai, no Summit Valor
Brazil-China, o diretor de política e estratégia do Cofco, Guo Jumping.
Do lado brasileiro, empresários planejam
aumentar a integração pela via da transição energética, prioridade estratégica
também da China. Os chineses se consolidam como líderes em energias
alternativas e na eletrificação da frota automotiva. “O carro elétrico será
dominante no Brasil”, afirmou Liu Xiaoshi, da plataforma China EV 100. No ano
passado, o segmento bateu recorde no Brasil. A chinesa BYD investe R$ 5,5
bilhões em Camaçari, na Bahia, para erguer sua maior fábrica fora da Ásia. Com
o barateamento trazido pela tecnologia chinesa, parece inexorável o motor a
combustão estar com os dias contados.
O avanço chinês no Brasil precisa também ser
analisado de perspectiva mais ampla. No ano passado, a China absorveu 28% das
exportações e respondeu por 41,4% do superávit comercial brasileiro. É
pertinente perguntar se convém ao Brasil tamanha dependência. Embora a guerra
comercial com os americanos abra oportunidades para exportações do agronegócio
brasileiro aos chineses, não espantará se em algum momento houver acordo para
reduzir tarifas — e portas se fecharem. A melhor estratégia para o Brasil é diversificar
ao máximo suas exportações, tanto na pauta quanto no destino.
Tragédia humanitária no Sudão requer ação
imediata de atores globais
O Globo
Em dois anos, 150 mil morreram, 13 milhões
tiveram de fugir e 25 milhões são ameaçados pela fome
A comunidade internacional continua cega,
surda e muda diante da tragédia no Sudão, onde ocorre a
maior crise humanitária do mundo. A origem é a guerra interna deflagrada em
2023 por dois generais que disputam o poder: Abdel Fattah al-Burhan, comandante
do Exército sudanês, e Mohamed Hamdan Dagalo, conhecido como Hemedti, à frente
das Forças de Apoio Rápido (FAR). A origem do desentendimento é a resistência a
integrar as FAR ao Exército regular, como estabelecido nos acordos que puseram
fim ao conflito em Darfur, que já deixara centenas de milhares de mortos.
Estima-se que, só nos últimos dois anos, a
guerra civil tenha levado ao deslocamento forçado de 13 milhões de pessoas —
numa população de pouco mais de 50 milhões —, causado a morte de
aproximadamente 150 mil sudaneses, mutilado ou matado cerca de 2.700 crianças e
espalhado a fome entre 25 milhões. As Nações Unidas, organizações não
governamentais e analistas têm criticado, com razão, a apatia deliberada dos
atores globais diante da catástrofe humanitária.
Não é por desconhecimento. Em janeiro, no
final do governo de Joe Biden, o então secretário de Estado americano, Antony
Blinken, acusou as FAR de cometer “sistemáticas atrocidades”, chamadas por ele
de “genocídio”. Anunciou que os Estados Unidos estabeleceriam sanções contra
Hemedti. Mas eram medidas tardias e pouco eficazes. Com a chegada de Donald
Trump à Casa Branca, o Sudão saiu da agenda do Departamento de Estado. Pior: ao
assumir, Trump cortou a assistência humanitária, usada para abastecer cozinhas
emergenciais criadas para enfrentar a fome.
Cerca de 70% dessas cozinhas fecharam,
segundo reportagem do colunista Nicholas Kristof no New York Times. Ao
testemunhar o drama da população sudanesa em março, ele ouviu relatos
dramáticos. Dois professores que conseguiram sair da capital, Cartum, afirmaram
ter sido obrigados a usar estradas secundárias na fuga, para evitar barreiras
dos grupos em luta. Quando os caminhões repletos de gente quebram nessas vias,
muitos morrem lá mesmo por não haver comida disponível. Pela segunda geração,
mulheres voltaram a ser atacadas e estupradas.
O regime sudanês liderado por Al-Burhan é apoiado com drones, mísseis e outras armas por Egito e Arábia Saudita, além de por Catar, Turquia e mesmo pelo Irã. O líder das FAR, Hemedti, recebe ajuda sobretudo dos Emirados Árabes Unidos, mas também de Líbia, Chade, República Centro-Africana, Sudão do Sul, além de contar com trânsito favorável com Etiópia, Uganda e Quênia. Uma iniciativa diplomática promovida por Emirados, Etiópia e um grupo de países recebeu apoio na última reunião de chanceleres do Brics, realizada no Rio. Ao mesmo tempo, os Estados Unidos vendem armas aos Emirados e a países da região com que mantêm fortes laços. Sua diplomacia teria como liderar um movimento multilateral para forçar o fim da guerra. Não há justificativa para a comunidade internacional não se mobilizar para interromper o massacre de sudaneses.
Sinal de negociação entre China e EUA é bom
para o mundo
Valor Econômico
Acordo poderia por fim a guerra tarifária que prejudica a todos e, principalmente, os Estados Unidos
Para quem se considera um grande negociador,
ao presidente Donald Trump não lhe faltam bons motivos para ajustar suas
demandas à realidade. As reações ao tarifaço foram extremamente negativas desde
2 de abril, “dia da liberação”, e só se amenizaram com recuos paulatinos de
Trump. Sinais do que está por vir apareceram na forma de queda de 0,3% do PIB
dos Estados Unidos e do recuo da produção industrial da China em abril, o maior
desde dezembro de 2023. Com um cenário muito mais adverso à frente, Trump e o
presidente Xi Jinping assinalam que podem começar a conversar.
Ao assestar 145% de tarifas nos produtos da
China, o que praticamente a alijaria do maior mercado do mundo, Trump esperava
que Xi Jinping se mostrasse disposto a fazer de tudo para impedi-las. Pequim
retaliou e manteve-se impassível na posição de não iniciar discussões sob
ameaça. Trump mentiu sobre o inexistente interesse chinês diversas vezes. Na
sexta, sinais de fumaça partiram do Ministério do Comércio chinês, que, em
comunicado, registrou: “Os EUA enviaram recentemente mensagens à China por meio
de partes relevantes, expressando o desejo de iniciar conversas. A China está
atualmente avaliando isso”.
Diante das consequências negativas,
abriram-se brechas na muralha tarifária de ambos os lados. As exóticas tarifas
“recíprocas” de até 50% foram suspensas até julho, uma volta atrás que se
estendeu depois a smartphones, eletrônicos, semicondutores vindos da China e um
abatimento nos 25% aplicados à importação de carros e autopeças. Sem alarde, a
China fez o mesmo com produtos vitais que dependem do fornecimento americano,
como farmacêuticos e químicos, em lista que envolve US$ 40 bilhões de
importações dos EUA (Bloomberg, 1/5). As exceções americanas atingem US$ 102
bilhões, pouco mais de um quinto das compras que os EUA fizeram da China em
2024.
Esse realismo decorre de abundantes
indicações de deterioração na situação econômica das duas principais economias
do mundo. Especialistas preveem um crescimento bem mais lento para a economia
chinesa este ano, na faixa dos 4%, ante a meta oficial de 5% de Pequim. As
exportações terão queda muito significativa a partir de 9 de abril - data em
que os 145% passaram a valer -, de acordo com a demanda por reserva de navios
para escoar bens chineses para os portos americanos, com diminuição de 35% a
40%. As vendas para os EUA foram muito boas devido à antecipação de compras
para evitar tarifas.
A perda de dinamismo na economia americana
será maior, de 2,7% para 1,8%, segundo o Fundo Monetário Internacional,
previsão que é otimista diante dos grandes bancos americanos, como o Goldman
Sachs, que espera expansão de 0,5%. O PIB do primeiro trimestre, que encolheu
0,3%, reflete ainda reação às tarifas. As importações dispararam muito acima
das exportações e retiraram 4,8 pontos do PIB, algo totalmente atípico. A
demanda interna permanece vigorosa, com o consumo crescendo 1,8% ao ano e sua
soma com o investimento fixo atingindo 3%. O desemprego permanece em 4,2% e a
abertura de vagas de trabalho mantém bom ritmo, longe dos números que indicam
uma recessão logo ali na esquina.
A rigor, quase nenhum efeito foi produzido
pelas tarifas nas estatísticas, mesmo nas de inflação. O núcleo dos gastos
pessoais de consumo (PCE), preferido pelo Federal Reserve (Fed, o banco central
americano), caiu para 0,2% em abril e 2,8% anuais. O PCE cheio foi de 2,6%. Sem
o “efeito antecipação” das tarifas, a economia dos EUA mantém um ritmo que
desencoraja esperanças de um corte de juros logo.
Mas esses números são o passado. Com eventual
volta das tarifas recíprocas, a barreira de proteção dos EUA chega a 27% - com
a suspensão, estão em 21%, segundo a Oxford Economics. Se Trump recrudescer e
elevá-las na média a 35% até o terceiro trimestre, a consultoria prevê que
inflação subirá aos altos níveis da pandemia (chegou a 9%) e a economia
mergulhará em recessão. No melhor cenário, de proteção tarifária de 12%, a
inflação aumentaria um pouco e a economia poderia crescer perto de seu
potencial (1,8%).
Trump envolve negociações em uma cortina de
fumaça, afirmando que há dezenas de países nelas envolvidos ao mesmo tempo. Na
forma inviável imposta por Trump, seria criado um pesadelo alfandegário e um
labirinto negocial - no limite, mesmos produtos terão tarifas diferentes para
cada país que fez acordo com os EUA. O déficit comercial americano de US$ 1
trilhão é fruto de transações com meia dúzia de países, e a maior parte dele
com a China, que pretende isolar.
À medida que as pressões para desmontar as
medidas protecionistas cresçam, com a queda de popularidade do presidente e
proximidade das eleições para o Congresso, onde os republicanos podem levar uma
surra, Trump poderá recuar. A negociação crucial será feita com a China. O
silêncio de Xi Jinping diante das investidas de Trump indica que Pequim não
mais considera as boas relações com os EUA como relevantes para seu futuro. Mas
para defender seus próprios interesses, e o da economia global, seria importante
que chegassem a um acordo para pôr fim a uma guerra que prejudica a todos, e,
principalmente, os EUA.
Prosseguir na queda da pobreza depende da
economia
Folha de S. Paulo
Taxa cai por três anos, mas melhora perde
ritmo; deve-se reformar Orçamento para conter dívida pública e gerar emprego
Num quadro de expansão do emprego e de gastos
sociais, a taxa de pobreza no Brasil caiu
de 21,7% em 2023 para 20,9% no ano passado, o terceiro consecutivo em que o
indicador do Banco Mundial mostra redução. Trata-se, obviamente, de uma boa
notícia.
É também a segunda melhor marca da série
histórica iniciada em 1981, só superada em 2020 em razão das transferências
emergenciais durante a pandemia.
Mesmo assim, ainda são 45,8 milhões de
pessoas com renda abaixo
de US$ 6,85 por dia em paridade de poder de compra das moedas, equivalente a
cerca de R$ 50 por dia no Brasil.
Apesar da melhora, a taxa brasileira ainda se
mostra alta em comparação com as de países latino-americanos, casos de Chile (4,6%), Argentina (13,3%), Bolívia (14,1%)
e Paraguai (16,2%).
Chama a atenção, ademais, que o ritmo do
progresso aqui venha caindo —de 5 pontos percentuais em 2022 para 2 em 2023,
apenas 0,8 em 2024 e parcos 0,2 esperados neste ano.
É provável que haja perda de vigor nos dois
principais fatores para a queda da pobreza: a geração de emprego, de um lado, e
a ampliação continuada de despesas sociais, de outro.
No ano passado, com crescimento do PIB de 3,4% e
criação de postos, houve alta de 4,8% do salário médio real. A diminuição da
pobreza poderia ter sido até maior, não fosse a inflação que
abarcou artigos de primeira necessidade, como os alimentos.
Neste 2025, diante de juros elevados
e da necessidade de conter a inflação, que como sempre penaliza os mais pobres,
espera-se menor geração de empregos, um custo evitável se o governo Luiz
Inácio Lula da
Silva (PT) tivesse sido mais previdente.
Também se esgota o segundo vetor, a rapidez
de expansão de despesas sociais, dado
o quadro de fragilidade orçamentária. O crescimento das rubricas
obrigatórias, que muitas vezes não são focalizadas nos que mais necessitam,
reduz o espaço para a ampliação de programas sociais que seriam mais
eficientes.
O Banco Mundial mostra que houve evolução
significativa, mas permanecem desafios.
Depois de cair à metade entre 2003 (48,7%) e 2014 (24,4%), a taxa de pobreza
vem progredindo muito pouco nos últimos dez anos. Retomar uma tendência mais
clara e sustentável de melhora adiante depende de reformas que impulsionem a
produtividade e o emprego.
Há avanços, como
a reforma tributária, mas é necessário eliminar as incertezas em relação à
capacidade do governo de controlar a dívida pública e assim abrir espaço para
juros menores.
O país também precisa de políticas públicas
inclusivas, tributação mais progressiva e uma ampla reforma orçamentária que
controle gastos obrigatórios.
Para tanto, a instituição recomenda um ajuste
fiscal equivalente a 3% do PIB, o que inclui a desvinculação entre benefícios
da Previdência
Social e o salário
mínimo.
É preciso revisar penas sob a Lei de Drogas
Folha de S. Paulo
Aplicação de tráfico privilegiado pode
reduzir punições; não faz sentido prender quem não representa risco à sociedade
Ao contrário do que prega a cartilha do
populismo penal, o encarceramento por si só não resolve problemas de segurança
pública. Equívocos nessa seara implicam, geralmente, prender muito e mal.
Levantamento
inédito do Conselho Nacional de Justiça, reportado pela Folha, revelou
que 110 mil dos 378 mil condenados por crimes relacionados a drogas poderiam
ter suas penas reduzidas se a condenação fosse revisada como tráfico
privilegiado.
Tal figura legal prevê regime mais brando em
casos que envolvem réus primários, com bons antecedentes e sem relação com
organizações criminosas.
A razão é simples: prender quem não
representa risco só fortalece facções do narcotráfico que atuam em presídios de
todas as regiões do país, sem qualquer ganho em segurança para a sociedade.
Apesar dessa premissa baseada em evidências, a realidade é bem diferente.
O Brasil ostenta o terceiro lugar no ranking
global de maior população carcerária, embora ocupe o sétimo lugar em número
total de habitantes. O principal motor prisional está no uso punitivista da Lei
de Drogas, de 2006, que não estabelece diferença objetiva entre usuários e
traficantes.
É o que revelam os números: subiu
de 14% para 28% o número de presos por tráfico entre 2005 e 2014. No caso
das mulheres, a taxa cresceu oito vezes entre 2002 e 2018, chegando a 64%.
A tipificação de tráfico privilegiado poderia
contribuir para desafogar o sistema, que além de tudo apresenta condições de
vida degradantes. Há empecilhos, no entanto. Tribunais tendem a afastar a
hipótese do tráfico privilegiado com argumentos vagos sobre o pertencimento do
acusado a organização criminosa.
Mas há também movimentos no sentido oposto. O
Supremo Tribunal Federal determinou, em 2023, que a União e estados enfrentem
problemas estruturais dos presídios, e o CNJ promove
mutirões para reduzir o número de presos injustamente.
Em junho de 2024, o STF decidiu
descriminalizar o porte de maconha para
quem tiver até 40 gramas da droga ou seis plantas fêmeas —medida que levou à
elaboração de uma nova política de drogas, ainda em andamento, por parte do
Executivo e do CNJ para que seja garantida a sua eficácia.
Já o plano Pena Justa do CNJ propõe, entre
outras medidas, padronizar decisões do Judiciário sobre tráfico privilegiado
para garantir maior objetividade.
As cortes precisam aplicar a lei com sensatez, para que réus de baixa periculosidade não acabem em prisões lotadas e insalubres.
O necessário debate sobre o mínimo
O Estado de S. Paulo
Nenhuma âncora fiscal será capaz de conter a
dívida enquanto o PT continuar a interditar a discussão sobre o salário mínimo
e sua vinculação com benefícios previdenciários e assistenciais
O economista Arminio Fraga foi recentemente
tratado como um pária ao propor que o salário mínimo tenha seu valor real
congelado por seis anos para conter a trajetória descontrolada dos gastos
públicos. A ideia recebeu uma saraivada de críticas de integrantes e aliados do
governo Lula da Silva, que, em vez de rechaçá-la com argumentos, optaram por
atacar o mensageiro, que participava da Brazil Conference, evento anual
realizado pela comunidade brasileira de estudantes na região de Boston, nos
Estados Unidos.
Arminio Fraga, como se sabe, foi presidente
do Banco Central durante o governo do presidente Fernando Henrique Cardoso,
período que, segundo a narrativa lulopetista, foi marcado por políticas
neoliberais que legaram ao País uma “herança maldita”.
Assim, a ministra-chefe da Secretaria de
Relações Institucionais, Gleisi Hoffmann, destacou a “crueldade” da medida,
enquanto o ex-ministro da Casa Civil e ex-deputado José Dirceu sugeriu que
“propor sempre uma redução do Estado de Bem-Estar Social” é uma injustiça
social e um erro histórico que inviabiliza o desenvolvimento nacional.
Não surpreende que nem Gleisi nem Dirceu
tenham sugerido uma alternativa viável para conter o galopante déficit fiscal.
Isso exigiria a honestidade de admitir a existência de um problema que ambos
preferem fingir que não existe.
Arminio Fraga teve papel relevante num dos
momentos econômicos mais críticos da história recente, quando o Brasil adotou o
regime de câmbio flutuante. Sob sua batuta, o BC administrou a desvalorização
da moeda e manteve a inflação sob controle. A despeito de uma taxa básica de
juros que chegou a 45% ao ano, o País registrou crescimento econômico e
alcançou superávits primários na proporção do Produto Interno Bruto (PIB).
São credenciais que falam por si só, e seria,
no mínimo, recomendável ouvir o que ele tem a dizer. Para Fraga, congelar o
salário mínimo por seis anos seria politicamente mais palatável a um governo
petista do que promover uma ampla reforma da Previdência. Em paralelo, a
redução da proporção de benefícios fiscais classificados como gastos
tributários federais dos atuais 4,5% para 2% do PIB contribuiria para um
cenário fiscal mais benigno e a consequente redução da taxa básica de juros.
Entre os incentivos fiscais que o economista
qualificou como “perversos” estão as deduções do Imposto de Renda que
beneficiam as classes mais abastadas, tanto na pessoa física quanto na pessoa
jurídica, e as renúncias da Zona Franca de Manaus, do Simples Nacional e do
Lucro Presumido. Como se vê, não se trata de nada radical ou exótico. A
proposta, ademais, poderia ajudar governos petistas, conhecidos pela imensa
dificuldade que têm para reduzir gastos na base da pirâmide social e cortar
privilégios do topo da elite empresarial.
Não é preciso ser um especialista em contas
públicas para reconhecer a urgência desse debate. Ninguém é contra a existência
de um piso para assalariados, mas o fato é que, enquanto o salário mínimo tiver
aumento real e servir como referência para aposentadorias, pensões, abono
salarial, seguro-desemprego e Benefício de Prestação Continuada (BPC), essas
despesas públicas também terão um crescimento acima da inflação.
Manter a correção do salário mínimo atrelada
à inflação diminuiria a projeção de rombo do Orçamento Geral da União, algo que
tem sido um impeditivo para a redução dos juros que financiam a dívida pública
e para a retomada dos investimentos necessários ao crescimento econômico.
No ano passado, a ministra do Planejamento,
Simone Tebet, chegou a propor a desvinculação entre o salário mínimo e alguns
dos benefícios assistenciais, mas foi igualmente alvejada por Gleisi, à época
presidente do PT. No entanto, a prática do partido de desqualificar o
interlocutor não fará com que o problema desapareça.
Já está claro que o arcabouço fiscal não foi
suficiente para reequilibrar as contas públicas, mas nenhuma âncora fiscal será
capaz de conter a dívida pública enquanto o PT continuar a interditar o debate.
Mais cedo ou mais tarde essa conta chegará, e quanto maior a demora, mais
dolorosa ela será.
Na educação, a pandemia não acabou
O Estado de S. Paulo
Dados do Saeb mostram recuperação lenta após
a pandemia, que só agravou problemas crônicos da educação nacional, como a
defasagem do ensino médio e da formação em matemática
A pandemia foi a maior ruptura educacional da
história mundial. O Brasil ainda viveu uma crise dentro da crise, pecando por
falta e por excesso. De um lado, o País teve o azar de ter no comando do
governo federal um presidente negacionista e negligente com a educação. É um
recorde difícil de bater, mas o Ministério da Educação (MEC) concorre ao título
de pasta mais desorganizada e incompetente da gestão de Jair Bolsonaro. Em
quatro anos foram cinco ministros, menos preocupados com instrução do que em transformar
o MEC numa trincheira de guerrilhas culturais. Por outro lado, por excesso de
zelo ou simples comodismo, o Brasil foi um dos países que mantiveram as escolas
fechadas por mais tempo no mundo.
Com a edição de 2023 do Sistema de Avaliação
da Educação Básica (Saeb), pela primeira vez foi possível analisar em detalhes
o efeito da pandemia sobre o desempenho de alunos do ensino básico. Um
levantamento do Todos pela Educação revelou que em 2023 a aprendizagem média
dos estudantes ainda não tinha voltado aos patamares de 2019. Projetando-se a
trajetória ascendente, não é impossível que hoje já tenha voltado. Mas o ritmo
lento preocupa. Além disso, desigualdades educacionais já evidentes antes da pandemia
persistem e em alguns casos se aprofundaram, com diferenças marcantes entre
estudantes de redes públicas e privadas, entre diversos grupos socioeconômicos
e entre unidades da Federação. No caso das desigualdades raciais, em 2023 elas
foram maiores que em 2013.
O estudo buscou ainda enquadrar o impacto da
pandemia no contexto mais amplo da evolução da educação nacional nas duas
últimas décadas. Nessa perspectiva, houve avanço relevante, mas longe de
suficiente, no porcentual de estudantes com níveis de aprendizagem considerados
“adequados” conforme os critérios do Programa Internacional de Avaliação de
Estudantes.
Os índices de sucesso se mostraram
decrescentes à medida que se avança nas etapas da educação básica. Entre os
alunos do 5.º ano, por exemplo, em 20 anos o porcentual com nível de
aprendizado adequado em português cresceu de 21% para 55% e, em matemática, de
11% para 43%. No caso dos alunos do 9.º ano, as elevações foram menos
expressivas: de 15% para 36% em português e de 9% para 16% em matemática. No
ensino médio, a elevação em português foi a menor dos três níveis: 13 pontos
porcentuais (de 19% para 32%). Em matemática, houve retrocesso – de 5,8% para
5,2% –, ou seja: o Brasil conseguiu piorar o que já era péssimo.
Assim, é possível distinguir dois desafios
críticos e persistentes para a educação básica: em termos de estágios, a
formação no ensino médio; em termos de disciplinas, a formação em matemática.
Nesse último caso, o tamanho do problema é evidenciado pelo desempenho das
escolas particulares. Em geral, alunos do ensino privado têm resultados gerais
razoavelmente próximos dos de seus pares nos países desenvolvidos e superiores
aos de seus conterrâneos nas escolas públicas. Na matemática, a defasagem é
geral: pior nas escolas públicas, mas ainda assim muito ruim nas privadas.
No mundo da revolução industrial 4.0, esse é
um problema estrutural grave não só para a evolução pessoal dos alunos, mas
para o desenvolvimento socioeconômico do País. Como mostrou um estudo da
Fundação Itaú, trabalhadores em ocupações que usam muita matemática têm maior
nível de escolaridade, menor taxa de informalidade e melhores salários que a
média. A defasagem no ensino de matemática tem plausivelmente uma relação
direta com a queda acentuada de matrículas nas graduações de Engenharia –
segundo o Instituto Semesp, só em Engenharia Civil houve diminuição de 51%
desde 2015 –, na contramão de países como Coreia do Sul, China ou Estados
Unidos, que investem pesadamente nesses profissionais visando à criação de
infraestruturas e novas tecnologias.
Mais do que sintoma da má formação em
matemática, o encolhimento do número de estudantes de Engenharia é emblema de
um país que a duras penas e com atraso – como evidencia a lenta recuperação
pós-pandemia – compreende a importância da educação para construir o futuro.
A joint venture entre PCC e CV
O Estado de S. Paulo
Para o cidadão aterrorizado pelo crime, o fim
do empreendimento delinquente não muda nada
Espanta a naturalidade com que se noticiou
recentemente o fim de uma “trégua” entre o Primeiro Comando da Capital (PCC) e
o Comando Vermelho (CV). Tão presentes na vida cotidiana de paulistas e
fluminenses, as duas principais organizações criminosas do País já não causam
mais espécie e são encaradas como são: vastos empreendimentos que eventualmente
se juntam numa espécie de joint venture para aproveitar “sinergias” e aumentar
a eficiência.
Em fevereiro passado, um relatório de
inteligência da Secretaria Nacional de Políticas Penais (Senappen), do
Ministério da Justiça e Segurança Pública, revelou a existência do suposto
acordo. A ideia era unificar a atuação dos advogados dos criminosos, de modo
que pudessem obter conjuntamente a flexibilização das atuais medidas de
isolamento a que os presos estão submetidos, reduzir os conflitos com mortes
entre os dois grupos e fortalecer seus negócios ilícitos.
Um dos motivos para o insucesso da empreitada
teria sido uma suposta rejeição do bando paulista às práticas violentas
cometidas pela facção do Rio de Janeiro. Não é fácil crer nessa versão: o PCC é
conhecido por seu histórico de atrocidades praticadas no “tribunal do crime”,
em que bandidos, como se se constituíssem em autoridades de um Estado paralelo,
denunciam, julgam e condenam, não raro à morte, seus dissidentes.
Parece mais crível o fato de que o PCC e o CV
não chegaram a um acordo naquilo que mais entendem: o cometimento de crimes.
Pois é isso o que sabem fazer e pretendem monopolizar. Como afirmou o promotor
Lincoln Gakiya, que há 20 anos investiga a facção paulista, não dava para
acreditar que “essa trégua seguiria adiante, porque tanto o PCC quanto o
Comando Vermelho têm interesses comuns”. E os interesses comuns dessas
organizações são, além dos pontos de venda de drogas País afora, as rotas de
tráfico internacional, com destino sobretudo para a Europa.
Gakiya disse também que “dificilmente” os
bandidos que atuam nas ruas abririam mão de poder, digamos assim, por ter
havido uma determinação dos líderes de dentro das penitenciárias. E, como
mostrou a reportagem do Estadão, um integrante da alta cúpula da Polícia
Militar do Estado de São Paulo afirmou que a aproximação dos bandos gerou
dúvidas nos membros do PCC e do CV. Sem o mínimo de coesão entre os
faccionados, as organizações, “pacificamente”, como alguns querem fazer crer,
decidiram romper a tal aliança.
Mas o que muitos chamam de aliança, acordo ou parceria – seja lá que nome queira se dar – não passa de complô. Esse é o termo adequado para se referir quando criminosos se juntam para atacar os cidadãos, o Estado e as suas instituições. Não se trata da fusão de dois grupos empresariais para a formação de um conglomerado, muito embora ambos movimentem cifras bilionárias e se infiltrem nas estruturas legais para contaminá-las. Trata-se de organizações mafiosas que aterrorizam os cidadãos e continuarão a fazê-lo – juntas ou separadas.
Conclave e o futuro da Igreja
Correio Braziliense
Quem entra papa, sai cardeal. Às vésperas do
conclave, a máxima é lembrada pelos integrantes mais calejados do colégio
cardinalício, o alto escalão da Igreja Católica que escolherá o Sumo Pontífice.
Favoritos nas bolsas de apostas podem naufragar; e outros, sequer lembrados, se
surpreender com os votos a seu favor.
Em resumo, o resultado da reunião na Capela
Sistina, no Vaticano, que começa na quarta-feira, é mesmo uma "caixinha de
surpresas", expressão que, com certeza, agradaria ao papa Francisco,
admirador número 1 de futebol. Até sair a fumaça branca na chaminé indicando a
eleição do novo pontífice e a multidão aglomerada na Praça de São Pedro ouvir o
"Habemos Papam", tudo pode acontecer. Em segredo.
A duração do conclave se reveste de mistério.
Várias vezes, a fumaça preta pode tingir o céu de Roma, mostrando que nada foi
decidido. Como ninguém sabe o que ocorre entre as paredes da capela coberta
pelos afrescos de Michelangelo, o destino vai depender mesmo da ação do
Espírito Santo. Somente Ele, conforme a fé católica, ilumina e orienta a
decisão dos presentes.
Entre os 133 cardeais que vão eleger o futuro
ocupante do trono de São Pedro, há nomes bem cotados. Estão no topo da lista o
filipino Luis Antonio Tagle, apelidado de "Francisco asiático", e o
italiano Matteo Zuppi, próximo a movimentos sociais, ambos da linha
progressista. Contrário a uniões homossexuais, ideologia de gênero e questões
morais que atribui ao "colonialismo ideológico do Ocidente", se
destaca o africano Robert Sarah, da Guiné. Também conservador, ganha atenção o
húngaro Péter Erdó, teólogo de formação rigorosa.
No grupo daqueles considerados moderados,
vistos como essenciais neste mundo polarizado para construção de pontes entre
progressistas e conservadores, figuram o italiano Pietro Parolin, secretário de
Estado da Santa Sé, e o congolês Fridolin Ambongo Besungu, que já se mostrou
contra a bênção a casais gays. Ele, a exemplo de cerca de 80% dos atuais
integrantes do colégio cardinalício, foi escolhido por Francisco. Do Brasil, há
sete cardeais com menos de 80 anos, que são eleitores e podem ser eleitos.
Em tempos tão midiáticos, as conversas nas
ruas, nos bares e em locais de trabalho quase sempre incluem o conclave. O
assunto está na boca do povo. E o cinema turbinou o tema com o filme (Conclave)
ganhador do Oscar de melhor roteiro adaptado. Mas entre ficção e realidade, há
oceanos de diferenças. É bom lembrar que, além de líder de 1,4 bilhão de
católicos no mundo, o papa desempenha o papel de chefe de Estado, tem múltiplas
responsabilidades. Portanto, a decisão final pode surpreender alguns dos participantes,
e exigir uma resposta imediata, apontar a direção.
O próprio Francisco contou em seu livro Esperança, primeira autobiografia de um Sumo Pontífice, como foi pego de surpresa. E falou da sua reação: "Quando o meu nome foi pronunciado pela septuagésima vez, explodiu um aplauso, enquanto a leitura dos votos continuava. Não sei quantos foram exatamente no final, não conseguia ouvir mais nada, o barulho encobria a voz do escrutinador". A volta à realidade veio na voz do cardeal gaúcho dom Cláudio Hummes, que o lembrou: "Não se esqueça dos pobres". Francisco escreveu que a frase o marcou, sentiu na carne: "Foi ali que surgiu o nome Francisco".
O cenário de licenciamento ambiental do Ceará
O Povo
O que se vê é um cenário de permissividade,
no qual nenhuma das instâncias reguladoras e fiscalizadoras tem sido capaz de
acompanhar as estratégias para contornar a legislação ambiental
A proposta de criação de uma Autarquia do
Meio Ambiente de Guaramiranga (CE), pelo Projeto de Lei (PL)
municipal nº 05/2025, acendeu alerta vermelho entre os cearenses. Com a
autarquia, Guaramiranga estaria apta a emitir licenciamentos ambientais, um
direito dos municípios desde que atendidas condições técnicas. A notícia tomou
as redes sociais e ambientalistas externaram preocupação com a possibilidade de
o município licenciar projetos de impacto negativo na Área de Preservação
Ambiental (APA) da Serra do Baturité, o que já vem ocorrendo na região.
Após denúncias, O POVO+ identificou
que o problema vai além de Guaramiranga e levantou pelo menos 17 municípios com
irregularidades comprovadas nos licenciamentos ambientais. "Recebemos
muito mais do que os 17 casos explicitados. Eram listas e listas de relatos de
irregularidades nos órgãos licenciadores dos municípios e na Superintendência
Estadual do Meio Ambiente (Semace). Muitas acusações, ainda que graves, não
podiam ser comprovadas", descreve a repórter do OP+ Ludmyla Barros, autora
da reportagem "Carta branca para 'tratorada': concessão de licenças vira farra
ambiental no Ceará".
Os desvios vão da falta de competência
técnica de municípios para emitir os pareceres, incluindo a inexistência de
profissionais concursados, até a fraude em estudos ambientais. Em Trairi, um
estudo que recebeu licença em 2013 pela Semace plagiou vários
parágrafos de outro documento. Quem identificou a fraude anos depois foi a
própria superintendência estadual. Já em Tabuleiro do Norte, uma empresa de
agropecuária investigada pelo Ministério Público tinha, no quadro de
funcionários, um engenheiro florestal que trabalhava na autarquia do município
fornecendo licenças ambientais.
O que se vê é um cenário de permissividade,
no qual nenhuma das instâncias reguladoras e fiscalizadoras tem se mostrado
capaz de acompanhar as estratégias para contornar a legislação ambiental. Enquanto
autarquias municipais e estaduais pecam na revisão íntegra e meticulosa dos
estudos, os órgãos fiscalizadores estão esvaziados e dependem de poucos
funcionários para abranger um estado com ecossistemas sensíveis.
O litoral e as serras estão especialmente
vulneráveis, com empreendimentos investindo em habitats de espécies em risco de
extinção. No sertão, as irregularidades parecem refletir diretamente na
saúde humana, na segurança alimentar e hídrica e no direito ao território.
Fica claro que antes dos municípios e o Estado usufruírem do direito de emitir licenças ambientais, se faz necessário fortalecer as instituições para cumprir um dever basilar da Constituição Federal de 1988: o de proteger o meio ambiente, a fauna e a flora (Art. 23) e o de priorizar a natureza mesmo na ordem econômica (Art. 170).
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