Valor Econômico
As leis que do assunto tratam no Brasil
desconhecem a dimensão humana e a função humana dos conceitos
Cara fechada, de poucos amigos, o sujeito
sentou-se ao meu lado, ocupando o lugar da janela para a longa viagem, de uns
650 km, por estrada de terra, entre Barra do Garças e São Félix do Araguaia, no
Mato Grosso. A estrada, que eu já havia percorrido outras vezes, cruzava ampla
região de pastagens, o pasto ressequido, pontilhado de troncos enegrecidos da
antiga mata derrubada e queimada.
Depois de um bom tempo, senti-me encorajado a puxar conversa com o vizinho, sem êxito. Só consegui que me respondesse quando lhe perguntei se tinha fazenda da região. Resmungou, contrariado, que sim. Tentei saber mais alguma coisa, tipo de empreendimento, como fora formada a fazenda. Ele nem sabia dizer exatamente onde ela ficava. Estava indo para uma vaga localização para encontrar as terras que dizia serem suas.
Pelas indicações que me deu, provavelmente, a
tal fazenda se localizava em terra indígena. Perguntei-lhe, então, se os índios
permitiriam que abrisse a fazenda em suas terras.
Finalmente, me encarou. Olhos arregalados e
indignado, falou-me furioso: “E índio tem algum querer?”.
Como fazem os brancos agora no questionamento
dos direitos dos indígenas a sua terra ancestral.
Naquela mesma viagem de pesquisa, já em São
Félix do Araguaia, eu caminhava pela rua principal, da beira-rio, quando vi um
senhor, um índio karajá, que caminhava cabisbaixo. Um garoto, de uns dez anos,
começou a debochar dele, apontando-lhe o dedo e dando gargalhadas. Perguntei ao
menino por que estava fazendo aqui. Expliquei-lhe que o índio é gente como nós.
“Como eu, não. Ele é gentio, e eu sou
cristão.”
Ecos longínquo dos tempos da Conquista e do
trabalho missionário mais antigo, de quando os conquistadores não reconheciam
nos nativos a condição de gente.
Não obstante, os próprios indígenas se
identificam por nomes tribais que querem dizer gente. Como os Suruí-Paíter, de
Rondônia. Os xavante, que foram quase dizimados por doenças de brancos, cujas
terras foram em grande parte por eles griladas.
Aracy Lopes da Silva, etnóloga da USP,
especializada na cultura desse, ouvira-lhes as dúvidas a respeito da
classificação dos brancos. Nas culturas indígenas tudo está classificado e tem
um nome. Nada existe sem se traduzir numa palavra que diga classificatoriamente
que é no mundo.
Os humanos são humanos, gente. Quem difere e
contraria a condição humana precisa ser localizado nesse amplo e totalizador
sistema de conhecimento. Os xavante já tinham uma certeza: os brancos não são
gente.
Tendiam a classificá-los como parentes da
onça, o animal que mata para comer mais do que precisa e abandona os restos de
suas vítimas na mata. O branco é da família dos predadores.
Não por acaso, o cacique dos Paíter-suruí, no
primeiro contato, dirigiu-se ao “cacique” da Funai nestes termos: “Branco, eu
te amanso”.
O branco é destrutivo não só no sentido de
matar os índios, como fizeram com o adolescente Oréia, Paíter, que se
apaixonara por uma adolescente branca, apaixonada por ele, filha de colonos que
acabavam de migrar para Rondônia. Uma tragédia shakespeariana na selva. Brancos
são, comparativamente aos índios, ignorantes
Todo o debate jurídico e legislativo que está
em andamento agora para legalizar o açambarcamento das terras indígenas pela
economia latifundista e pela mineração predatória se baseia em categorias da
economia capitalista, mas não das da economia tribal.
A relação da economia capitalista com a terra
é a da renda da terra e não do uso. Na economia indígena, a relação é com o que
em nossa língua oficial e coisificadora se pode definir como território,
ecologicamente definido, mediação de amplo sentido na reprodução da sociedade,
das relações sociais, da mentalidade, das necessidades, enfim, reprodução da
vida.
As leis que do assunto tratam no Brasil, e
mais agora nesta era de egoísmo, usurpações, assassinatos, desconhecem a
dimensão humana e a função humana dos conceitos. Desconhecem que o território
indígena não quer dizer o conceitual do direito do branco. Quer dizer o
inconceitual da humanidade dos seres humanos, quer dizer a vida. Nem quer dizer
a vida de cada um, mas a de todos, da teia de parentesco, dos valores que
permitem os vínculos e interditam o incesto em concepção muito mais ampla e
restritiva do que a nossa.
As sociedades indígenas não são sociedades
econômicas. Economia é uma categoria de brancos, que só tem sentido nos bancos
e nas bolsas de valores. Mas não tem nenhum sentido na vida propriamente dita.
Os brancos é que formam uma associação
econômica de indivíduos unidos pelo egoísmo e nesse sentido destituídos do que
é propriamente vida. O marco temporal é indevida demarcação do direito à vida.
É uma pena de morte.

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