domingo, 17 de janeiro de 2010

Alberto Dines ::Onde fica o Haiti

DEU NO JORNAL DO COMMERCIO (PE)

O Haiti não é aqui nem acolá, está em todo lugar. Incorporou-se à humanidade, converteu-se em dever moral. Era um caos até esta terça-feira à noite, o terremoto fez dele um inferno. Agora pode converter-se em traço de união. Raul Castro e Barack Obama deram o primeiro passo: Cuba autorizou voos americanos no seu espaço aéreo em missões de evacuação e socorro às vítimas da catástrofe.

O percurso Miami-Porto Príncipe ficou 90 minutos mais curto, o mundo ficou mais próximo. Menos arisco: sensível. Dois dias antes, Zilda Arns ofereceu a sua vida para resgatar a palavra solidariedade e recolocá-la nos glossários e agendas internacionais, junto com os 17 soldados e oficiais do Exército brasileiro da missão da ONU.

Na década de 80 do século passado, a ideia de solidariedade converteu-se em instrumento político para derrubar o regime comunista na Polônia, agora pode cimentar um grande pacto humanitário e, através dele, recolocar com dignidade o Haiti no mapa-múndi. Seu lema nacional, por coincidência, é L"Union fait la force.

O verbete solidariedade não consta da primeira edição do dicionarista brasileiro Moraes Silva (1789), embora esteja registrado o verbo solidar, tornar sólido, fundar, corroborar. Mais recentemente o verbo evoluiu, desdobrou-se em consolidar, ação coletiva para fortalecer. Nos escombros da capital haitiana, nas valas comuns onde estão sendo enterradas milhares de vítimas, neste planeta fragmentado e acabrunhado por confrontos intermináveis ressurge um indício de aproximação.

Aproximação sem pré-condições, sem negociações, sem política e artimanhas ideológicas, impulso para juntar-se e ajudar. Nas semanas anteriores ao cataclismo o Brasil aparecia dividido e enfurecido com o 3º Programa Nacional dos Direitos Humanos. Militares recusavam-se a sentar no banco dos réus enquanto as vítimas, parentes e entidades exigiam a verdade sobre o passado recente. De repente, no Haiti, descobrimos heróis nas fileiras dos "vilões". A busca da verdade não significa obrigatoriamente o estabelecimento de divisões.

Solidariedade é um antídoto para a dissensão, ressentimentos, sentimento mais efetivo, eficaz e, sobretudo, mais justo do que caridade e compaixão. Solidariedade não hierarquiza, iguala, faz da doação um processo mútuo. Autoestima multiplicada. Serve às religiões, aos crentes e descrentes, devotos e céticos. Atenção: os fanáticos a abominam. A eles não interessa qualquer reciprocidade.

O Haiti merece uma pausa em nossa atribulada desatenção. A oportunidade perdida em Copenhague, dezembro de 2009, pode ser revertida a partir de 12 de janeiro de 2010. As 30-50-100 mil vítimas do furor emitido pelas entranhas da terra podem servir de alerta para aqueles que menosprezam o que acontece acima da sua crosta. A solidariedade com a natureza é crucial: ela está atenta, aparentemente não comanda os choques das placas tectônicas, mas não perdoa aqueles que a desrespeitam.

O Haiti já foi metáfora e mote. Nos idos de 1968, a dupla de cantores-compositores, Caetano Veloso e Gilberto Gil, usou o Haiti como protesto e provocação, libelo contra a tirania e intolerância. O Haiti é aqui, o Haiti não é aqui, com este jogo geográfico driblavam os censores naquela época uniformizados, ainda não togados.

"Pense no Haiti, reze pelo Haiti" diziam então os dois trovadores. Hoje, poderiam acrescentar: "Ai de ti, se esqueces o Haiti."

» Alberto Dines é jornalista

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