sábado, 14 de agosto de 2010

A aceleração da desordem

DEU EM O GLOBO

Moradores transformam imóveis do PAC do complexo de Manguinhos em lojas, bares e até açougue

Marcelo Dutra e Cláudio Motta

Moradores de pelo menos uma dezena de apartamentos do Programa de Aceleração do Crescimento (PAC), no complexo de Manguinhos, na Zona Nor te, estão transformando os imóveis que receberam gratuitamente do governo federal em estabelecimentos comerciais.

No Condomínio João Nogueira, é possível ver bares, quitandas, lojas de ferragens e bazares à beira da Avenida Suburbana. Há até um açougue com um frigorífico improvisado na sala de um dos apartamentos térreos. Pela regra, os imóveis não podem ser alugados, transformados em pontos comerciais ou modificados. O governo do estado, que atuou no local em parceira com a União, avisa que poderá retomar as moradias.

Os exemplos são muitos. Em outra unidade habitacional, há um bar com mesa de sinuca e uma jukebox, ao lado de prateleiras lotadas de doces e salgados. Pelo menos dois dos apartamentos do condomínio, que viraram pontos comerciais, são sublocados por R$ 300. Segundo as pessoas que exploram os negócios, os proprietários se mudaram para outras comunidades.

O condomínio tem 396 unidades habitacionais, cada uma com 42 metros quadrados. São dois quartos, sala, cozinha, banheiro e varanda. A obra foi parcialmente inaugurada em dezembro do ano passado pelo presidente Luiz Inácio Lula da Silva e custou aos cofres públicos cerca de R$ 53,2 milhões.

O objetivo era beneficiar duas mil pessoas daquela comunidade.

A maior parte dos estabelecimentos está funcionando na varanda e na sala dos apartamentos térreos.

Mas há quem utilize todo o espaço nas instalações comerciais.

Não moro no apartamento.

Aqui é só comércio. Eu pago um aluguel de R$ 300 a uma moça que mora em Saracuruna com a mãe doente.

O apartamento dela ficou vazio e eu não perdi tempo. Na verdade, eu moro em um outro apartamento que ganhei do governo aqui mesmo contou uma comerciante que atende o público em um dos estabelecimentos.

Outro dono de negócio diz que suas vendas crescem nos fins de semana quando amplia o número de clientes, espalhando mesas na calçada.

As mesas ficam cheias e a cerveja rola a noite toda disse ele, que é dono do apartamento.

Segundo alguns moradores, traficantes estão cobrando uma taxa mensal de R$ 15 a R$ 20 para garantir a segurança dos estabelecimentos porque, há 20 dias, foi registrado um caso de roubo.

Isso começou após a invasão de uma loja em que o comerciante perdeu R$ 500. O vigia nem sai da boca de fumo. À noite, ele fica lá em cima vendo tudo que acontece. Durante o dia, nem vemos, mas agora mesmo ele está de olho contou um dos comerciantes.

Arquiteto de obra não vê gravidade

Antes da mudança para um dos apartamentos, o morador teve que participar de um curso de 15 horas, com no mínimo 75% de presença. Caso contrário, ele não receberia as chaves.

Nas palestras, eles são informados que não podem alugar o apartamento nem fazer modificações fora do padrão. De acordo com a Empresa de Obras Púbicas (Emop), órgão do governo do estado, uma equipe do PAC social será enviada na próxima terçafeira para convencer os moradores a desfazerem as alterações feitas. Quem não respeitar as normas de conduta poderá perder a casa.

A coordenadora do trabalho social do PAC no governo do estado, Ruth Jurberg, informa que está em fase inicial um treinamento em que os moradores vão aprender formas legais de gerar renda, dentro de um conceito de desenvolvimento sustentável: Não é permitido fazer comércio.

A gente já conversou com os moradores, mas muitos moravam em casas que também eram lojas.

O que estamos trabalhando agora é o desenvolvimento sustentável.

Tem um eixo que se chama geração de emprego e renda. Vamos incentivar a formação de cooperativas, capacitar moradores e organizar espaços para gerar renda de forma organizada.

As mudanças na arquitetura dos apartamentos também podem ser consideradas irregulares, embora algumas, como a instalação de aparelhos de ar condicionado, tenham sido autorizadas pelo governo.

O uso de grades ainda está sendo discutido. Mas alguns moradores já protegeram suas janelas, alegando que se sentem inseguros.

O governo está acompanhando o processo de adaptação dos moradores, que não podem nem vender nem alugar o imóvel por cinco anos. Eles assinaram os documentos e sabem que os apartamentos podem ser retomados. O governo tem essa prerrogativa. O que nós queremos é atender o maior número de famílias carentes, não pessoas que vão alugar o apartamento disse Ruth.

Para a pesquisadora Hilaine Yaccoub, antropóloga doutoranda da UFF, os moradores da comunidade se acostumaram a buscar fontes alternativas de renda.

Quando são transportados para outro contexto, com tudo regularizado, acabam criando meios de sobrevivência e geração de renda.

Por isso o puxadinho e o comércio observa. Além disso, o apartamento foi desenhado por arquitetos e engenheiros que têm o olhar de fora, que pode não refletir os valores e as necessidades de quem mora ali.

Por outro lado, o arquiteto da empresa Metrópolis Projetos Urbanos (MPU), Jorge Jauregui, que desenhou os edifícios de Manguinhos, minimizou o impacto das alterações feitas pelos moradores. Ele disse que considera boa a ideia dos toldos.

Para ele, os moradores ainda estão aprendendo a viver num condomínio.

Jorge destaca a importância do trabalho social, que vai ensinar a eles as diferenças entre espaço público e privado.

Mesmo a classe média, às vezes, usa os espaços de maneira diferente da que o arquiteto planejou.

Ipanema e Leblon também têm puxadinho.

Faz parte da cultura cívica mostrar que é necessário respeitar o limite do público e do privado afirmou o arquiteto, que ontem estava no local. Não vi qualquer mudança grave. Algumas varandas fechadas, toldos. Nada muito sério.

Gostei do toldo do comércio em frente a uma praça. Tudo isso bem pensado, bem incorporado, pode ser uma contribuição para o projeto.

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