Tive uma grata
surpresa com o julgamento da Ação Penal 470 pelo Supremo Tribunal Federal
(STF). A nossa democracia parece ter reencontrado a vitalidade, que parecia
fenecida por causa da crise em que o Poder Executivo, sobranceiro à lei, tentou
comprar definitivamente o apoio do Poder Legislativo mediante a prática de
corrupção sistemática, ao ensejo do episódio que o denunciante do esquema, o ex-deputado
Roberto Jefferson (PTB-RJ), denominou como "mensalão".
O nome pegou, para
desespero do ex-presidente Lula da Silva, do ex-ministro José Dirceu et
caterva. Foram julgados e condenados, se não todos, pelo menos alguns dos
responsáveis mais representativos do sinistro esquema. A História
encarregar-se-á de julgar os que escaparam, a começar pelo chefe, que, pelo
teor das investigações e dos depoimentos, "sabia de tudo".
É de Oliveira
Vianna a previsão de que a redenção das instituições republicanas, no Brasil,
viria pela mão do Poder Judiciário. Vítima da "política alimentar" -
nome dado pelo sociólogo fluminense ao esquema de clientelismo e corrupção que
se apossou da vida pública desde tempos que remontam à derrubada do Império -,
a República acordaria da catalepsia em que a privatização patrimonialista do
poder pelas oligarquias a fez mergulhar. A independência do Poder Judiciário,
segundo Oliveira Vianna, no livro Instituições Políticas Brasileiras (1949),
garantiria as liberdades civis; asseguradas estas, o País poderia pensar na
conquista das liberdades políticas.
Ora, os pareceres
dos juízes do Supremo Tribunal puseram na pauta da política dois princípios
fundamentais. Em primeiro lugar, todos devem respeitar, sem exceções, a lei e
seu marco arquetípico, a Constituição. Em segundo lugar, os que governam não
podem agir utilizando a máquina do Estado em benefício próprio. Dois princípios
de ética pública que, meridianos, voltaram a presidir o espaço republicano, a
partir dos pareceres dos magistrados da nossa Suprema Corte.
Que a sociedade
respirou aliviada com a ação patriótica do STF o deixam claro as opiniões dos
leitores na mídia eletrônica e impressa, bem como as espontâneas manifestações
de aplauso dos cidadãos quando encontram um dos nossos magistrados, em que pese
a cerrada política armada pela petralhada, de denuncismo de "golpe da
magistratura e da imprensa".
No esquema do
mensalão marcaram encontro dois vícios da política: o tradicional
"complexo de clã" e a ausência de espírito público, bases do
patrimonialismo. Esses dois vícios, entrelaçados como as caras da mesma moeda,
fazem com que os atores políticos ajam única e exclusivamente em benefício
próprio e das suas clientelas, privatizando as instituições. Nisso o Partido
dos Trabalhadores (PT) e coligados se mostraram eficientes "como nunca
antes na História deste país".
A esses dois vícios
vieram juntar-se duas tendências da cultura política moderna. A primeira, o
jacobinismo (inspirado na filosofia de Rousseau, no século 18), segundo o qual
a organização da política, nos Estados, deve pautar-se pelo princípio da
unanimidade ao redor da "vontade geral" (identificada com o
legislador e imposta por seus seguidores, os "puros"), sendo excluída
qualquer oposição. O segundo princípio negativo diz respeito ao
"messianismo político" - pensado no início do século 19 por
Henri-Claude de Saint-Simon e continuado por seu discípulo Augusto Comte.
Ora, na nossa
organização republicana se juntaram, com o correr dos séculos, numa síntese
perversa, esses dois princípios, bem como os vícios balizadores do
patrimonialismo. O jacobinismo e o messianismo político reforçaram-se,
dramaticamente, na contemporaneidade, com a tendência cientificista do marxismo
(inspiradora dos ideólogos petistas), que passou a pensar a política em termos
de hegemonia partidária, à maneira gramsciana.
Na História
republicana terminou se consolidando, à sombra das variáveis mencionadas, um
modelo identificado com a prática do despotismo. Castilhismo, getulismo,
tecnocratismo autoritário, lulopetismo, eis os resultados desse amálgama nada
republicano.
Como dizia Alexis
de Tocqueville referindo-se à França de 1850, a face da República viu-se
desfigurada pelas práticas despóticas. No Brasil, a res publica virou
"coisa nossa", num esquema mafioso de minorias encarapitadas no
poder, que fazem o que bem entendem, de costas para a Nação, mal representada
num Poder Legislativo que se contempla a si próprio e zela quase que
exclusivamente pela manutenção de seus próprios privilégios.
Com uma agravante,
atualmente: se nos momentos anteriores havia autoritarismo, este se equilibrava
com uma proposta tecnocrática bem-sucedida (como nos momentos getuliano e do
ciclo militar) ou com um respeito quase sagrado pelo Tesouro público (como no
castilhismo). Restou-nos o assalto desavergonhado aos cofres da Nação, em meio
ao mais descarado compadrio sindical.
Ecoam ainda as
graves palavras com que um dos ministros do Supremo Tribunal Federal
caracterizou, dias atrás, o mal que tomou conta do Brasil. "Formou-se na
cúpula do poder, à margem da lei e ao arrepio do Direito, um estranho e
pernicioso sodalício, constituído por dirigentes unidos por um comum desígnio,
um vínculo associativo estável que buscava eficácia ao objetivo espúrio por
eles estabelecido: cometer crimes, qualquer tipo de crime, agindo nos
subterrâneos do poder como conspiradores, para, assim, vulnerar, transgredir e
lesionar a paz pública".
Gravíssima situação
que a nossa Suprema Corte encarou com patriotismo e coragem. Esperamos que essa
benfazeja reação seja o início de um saneamento completo das instituições
republicanas.
Professor da UFJF
Fonte: O Estado de S. Paulo
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