Celso Lafer reverencia o filósofo Norberto Bobbio e suas ideias sobre direitos humanos e tragédias da humanidade
Blaise Pascal critica os escritores que, ao falar dos seus textos, enchem o peito e dizem "meu livro, meu comentário, minha história, etc". Doença dupla: personalidade inchada e ignorância da cultura. Eles fariam melhor se grafassem nos títulos: "Nosso livro, nosso comentário, nossa história". Naqueles escritos "há maior parcela do bem alheio do que do próprio". "O eu é odioso" quando se imagina único na ordem física e humana. O ego inflado condena ao papel de "ridicolosissimo eroe".
Corroborando as teses pascalinas, o etnólogo Leroi-Gourhan mostra que o espírito e a técnica negam a originalidade absoluta. Só inventa, diz Gourhan, quem empresta. E só empresta quem sabe inventar. Em tal círculo, a humanidade recolhe indivíduos e coletivos geradores de novos sentidos e significações, gestos e máquinas, signos e filosofia.
A ética evocada acima tem um nome: generosidade. Quem se julga fonte de todos os enunciados é avarento cultural, pois acumula ideias, mas nada produz para os demais seres pensantes. É o intelectual formiga criticado por Francis Bacon: reúne fatos ou temas e não os sintetiza. O pensamento generoso opera como as abelhas. Segundo Bacon, Platão, Horácio, do néctar elas produzem o mel nutritivo. Marca do pensador generoso é a busca, nos que pensaram antes, do alimento que, digerido, nutrirá os vindouros.
Maquiavel é um pensador generoso. Basta recordar sua carta ao amigo Vettori (de 10/ 12/1513). Após um dia rotineiro "entro em meu gabinete; no vestíbulo me despojo das roupas diárias, envergo minhas vestimentas reais e curiais. Coberto decentemente, entro nas cortes antigas dos homens antigos onde, recebido por eles com amizade, sou alimentado pela comida que é só minha e para a qual nasci". E assim, "redigi um opúsculo, De Principatibus...". O "livrinho" modificou o modo de pensar a história, a política, a religião, a moral. Mas foi gerado no banquete com Aristóteles e Platão, os gigantes do pensamento. O pensador generoso não morre, diz Elias Canetti. Ele se oferece "aos vivos como o mais nobre dos alimentos". Assim deve ser lida a advertência de Pascal: quem chega à essência da cultura é saciado pelos que vieram antes, transmite vida aos sucessores, transporta almas e corpos.
No livro publicado pela Editora Perspectiva, escrito com extremo bom gosto e acuidade por Celso Lafer, temos o encontro de vários pensadores generosos. O principal é Norberto Bobbio, homem reto do século 20, dos poucos que podem ser postos ao lado de Sartre, Raymond Aron, Bertrand Russell, no diminuto panteão dos paradigmas éticos e políticos daquele século. Perceptível em todas as páginas a presença de outra generosa escritora, Hanna Arendt.
Após um delicado capítulo inicial, em que trata Bobbio como autoridade (no sentido dado por Arendt e pela tradição humanística), Lafer segue o filósofo na sua vida e reflexão polifacetadas. Bobbio como professor, tal como surge na autobiografia, antecipa os pontos fortes dos seus esforços em busca da paz (reatualização de Erasmo, Kant, Saint-Pierre e outros luminares modernos). A procura da paz verdadeira passa pela compreensão da guerra e, portanto, por um diálogo com Hobbes, eterno aguilhão das consciências adormecidas. Toda a parte segunda do livro é uma inspeção dramática das tragédias vividas pela humanidade no fato bélico, e das contribuições de Bobbio para o entendimento do máximo delírio coletivo. Como dedução lógica e histórica, vêm as belas e realistas visões do pensador sobre os direitos humanos, tão vilipendiados no século 20 e nos dias atuais. Daí, como em imenso silogismo, temos os espinhosos problemas jurídicos e políticos expostos por Bobbio segundo as regras da mais fina sprezzatura, educada claridade sem exibicionismos técnicos ou eruditos que afastem o público dos reais problemas.
Em nenhum prisma Bobbio se encastela no ego ou na seita. Ele expõe com rigor o pensamento do qual discorda, sem reduzi-lo à desimportância ou à hostilidade. A presença de um terceiro como instrumento de acordo e debate é uma das suas intuições mais ricas. A linha retomada por ele é o senso da complexidade, que recorda o anseio pelo concreto em Hegel e Marx: "O concreto é síntese de múltiplas determinações, unidade do diverso". O senso do concreto o distancia dos extremos em sua fúria. Ele pratica a dúvida metódica, odiada pelos entusiastas.
Se Bobbio não se esconde nas prisões do ego, nem por isso deixa de valorizar a ordem subjetiva. A identidade no coletivo, adianta Lafer em sua bela análise, traz as semelhanças. O individual oferta as diferenças. O mundo do espírito não sobrevive sem a tensa harmonia dos opostos, lição antiga como o pensamento do Ocidente.
Em tempos vincados pelos egoísmos, mas paradoxalmente tragados em massas físicas ou virtuais, vale a pena ler Norberto Bobbio reapresentado aos brasileiros por Celso Lafer, um intelectual cujo pensamento é dos mais generosos e agudos no Brasil. "Da observação da irredutibilidade das crenças últimas extraí a maior lição da minha vida. Aprendi a respeitar as ideias alheias, a deter-me diante do segredo de cada consciência, a compreender antes de discutir, a discutir antes de condenar." Bobbio, aduz Lafer, "arremata a frase dizendo em tom confessional que detesta os fanáticos". Entre o liberalismo sem freios e o socialismo sem limites, Bobbio indaga as razões de ambos, busca alternativas que não conduzam ao extermínio do outro pelos arautos do mesmo. Se todos seguissem tal paradigma, o mundo seria mais generoso, cultivado, polido e… humano.
Roberto Romano é professor de filosofia da Unicamp
Fonte: Caderno 2 / O Estado de S. Paulo
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