Reabertura do processo do mensalão traumatiza o país. Desmoralizaria o Tribunal aos olhos da população que nele investiu suas esperanças de regeneração da Justiça
A possibilidade de que o Supremo Tribunal Federal venha a aceitar a reabertura do processo do mensalão traumatiza o país. Essa decisão desmoralizaria o Tribunal aos olhos da população que nele investiu suas esperanças de regeneração da Justiça. De todas as frustrações que nos têm sido impostas, essa seria a mais grave, porque nos roubaria o bem insubstituível que é a esperança. A condenação por esse crime de lesa-sociedade seria definitiva, não aceitaria embargos infringentes. A pena seria a execração da opinião pública ferida pelo desalento, que é o mais triste e perigoso dos sentimentos. O Tribunal enviaria à sociedade uma mensagem facilmente decodificável: a lei não é igual para todos. Pergunte-se a qualquer anônimo condenado por formação de quadrilha. Plantaria uma semente venenosa: uma sociedade que perde o respeito pela Justiça se desintegra na anomia.
Caso ocorra essa decisão viria na contramão de um tempo em que a palavra cidadania, enxovalhada no palanque de qualquer demagogo, começa a recuperar seus títulos de nobreza. É a cidadania que está questionando as instituições quando elas atentam contra si mesmas.
No dia 7 de setembro sobrou lugar nas arquibancadas e no asfalto. Temida pelas autoridades como penetra e estraga festa, a multidão não veio. O movimento de junho teria acabado tão subitamente como começou? Ora, em três meses o gigantesco descontentamento da população não poderia ter sido e não foi aplacado. Fermenta. A internet não serve apenas para convocar manifestações de rua, ela é a rua onde, a cada minuto, pessoas se manifestam. A indignação persiste e trabalha. O silêncio das ruas deveria meter medo.
Quem quer se misturar com um brutamontes mascarado que arranca postes e, de quebra, ser sufocado com gás lacrimogêneo? Numa comédia de erros, uma gente violenta, supostamente preocupada com o mau uso do dinheiro público, se dedica a destruir o patrimônio do Estado, legando à coletividade uma conta salgada. Afastam as pessoas das ruas e só não destroem o movimento porque não é nas ruas que ele se dá. Porque não existe o “Movimento”. É a sociedade brasileira inconformada que está, há muito tempo, em movimento.
Margaret Thatcher, que usava os antolhos do Mercado Todo Poderoso, disse que não existe essa coisa chamada sociedade. Ela existe e é muito mais do que os segmentos que se intitulam organizados e, em filigrana, criam uma hierarquia em relação ao “resto”, a maioria nada silenciosa que não foi mobilizada por ninguém, se automobiliza segundo seus momentos e interesses.
Volátil, essa sociedade em que cada um sabe o que quer é infensa à cooptação por partidos ou à manipulação pelo engenho de marqueteiros. Boçais mascarados não a representam. Diversa e contraditória foi ela que veio à rua. Essa sociedade inconformada quer bem viver, quer liberdade e justiça.
Quem teme uma crise institucional não se dá conta de que ela já está em curso. O que se chama crise é uma situação em que o continente não contém mais o conteúdo. Quanto mais uma instituição representativa como o Congresso cai no ridículo — corrupto, atrasado, homofóbico — mais a sociedade dela se distancia. Quanto mais pífios são os serviços públicos, menor é a tolerância da população com o governo.
Os brasileiros já têm parâmetros de comparação entre a vida que levam e a que poderiam levar. Com razão atribuem à corrupção a distância entre o real e o possível. Não de maneira genérica como um crime contra um Estado, abstrato e desencarnado, mas como um crime contra cada um.
O nexo de causalidade entre corrupção e degradação da vida cotidiana implantou-se na consciência popular. Fiat lux! Impostos — e os nossos são escorchantes — são um contrato de prestação de serviços, que já foram pagos e não estão sendo prestados, configurando um estelionato de Estado.
Não se fazem mais carneiros como antigamente. A tolerância bateu em zero.
O espantalho da crise institucional assusta, mas não cura a descrença nas instituições. Imaginar — e experimentar — uma nova engenharia institucional é o maior desafio político do Brasil de hoje. Um Congresso que abriga um deputado presidiário deveria estar cercado por grades, não se regenera a si mesmo.
As propostas de refundação, como foi a Lei da Ficha Limpa, vieram de fora do sistema político. Assim será com essa nova dinâmica que brotará da energia da sociedade, exprimindo os valores que ela não aceita negociar. A sociedade brasileira descrente das instituições no ano que vem votará. Os idos de setembro não terminaram.
Rosiska Darcy de Oliveira é escritora
Fonte: O Globo
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