Mudança social acelerada gera descompasso
Diversos eventos agitam a vida política nacional desde junho do ano passado, quando tomaram as ruas manifestações de tipos diversos, portadoras de reivindicações disparatadas, motivações desalinhadas e métodos diferentes. Os últimos ingredientes desses movimentos heterogêneos não se resumem à primeira vítima fatal produzida por manifestantes (já que outras antes houvera, causadas por sequelas da ação da polícia ou por investidas de motoristas inconformados com o bloqueio das ruas), nem ao lema chantagista do "Não vai ter Copa" - seguido das ameaças diretas de violência contra as delegações estrangeiras.
Há, na realidade, muito mais sinais no horizonte, dando conta de que algo vai mal na conjunção do sistema político com a sociedade. A opção cada vez mais desabrida por soluções violentas e fora da lei para problemas sociais e políticos é defendida de viva voz, ora por militantes de esquerda, ora por jornalistas de direita, e todo o tempo no âmbito da subopinião-pública que fermenta na internet - nas redes sociais e blogs. Fossem apenas a apologia ao justiçamento ou a ameaça verbal a esportistas e políticos, já teríamos razões de sobra para nos preocuparmos. Todavia, há mais do que isto, pois justiçamentos têm sido efetivados e a violência contra desafetos já acontece.
Por fim, há um claro azedamento do clima político, que não começou ontem. A criminalização do adversário político, de lado a lado, misturando acusações de corrupção à discordância quanto a opções de políticas públicas - como se fossem a mesma coisa - não é uma completa novidade, mas vem recrudescendo. E o problema disso é o seguinte: se o adversário é um criminoso, o próximo passo é defender sua proscrição do jogo. Faz-se democracia assim?
O que, afinal, sucede?
O país, nos últimos 20 anos, experimentou um acelerado processo de mudança. Primeiramente, foi o fim da hiperinflação, e a consequente redução da pobreza. Tal processo se fez acompanhar do incremento de políticas sociais, como educação e saúde - sem contudo aumentar de forma significativa sua qualidade. Na sequência, veio a ampliação das políticas de transferência de renda - seja diretamente, pelas políticas focalizadas (como o Bolsa Família), seja indiretamente, pela redução do desemprego e pelo aumento do salário mínimo. Com isto, adveio uma nova e mais pronunciada redução da pobreza, além da queda da desigualdade.
Como já exaustivamente observado por estudiosos, milhões de brasileiros ascenderam economicamente, aumentando a chamada "classe C", definida por alguns como "classe média", mas melhor categorizada por Jessé Souza, como uma classe de "batalhadores" - já que não dispõem de alguns elementos distintivos da classe média, como o capital cultural e reconhecimento como tal. Observou-se que tal ascensão social se deu via consumo, de modo que em vez de "cidadãos" os emergentes seriam apenas novos "consumidores". Na feliz imagem do então candidato a prefeito, Fernando Haddad, "a qualidade de vida da porta para dentro melhorou, mas não se reflete da porta para fora".
A ascensão pelo consumo, contudo, tem efeito desorganizador na ordem tradicional da sociedade brasileira, tão calcada sobre a desigualdade. O acesso a certos bens de consumo era, até pouco tempo atrás, signo de distinção social. O acesso ao aeroporto, a certos shoppings e a certas marcas não estava disponível para qualquer um. Apenas os originários das classes abastadas (e os poucos que a elas adentravam), "gente bonita", logravam exibir sinais de seu pertencimento a um estrato social distinguido. A chegada de "gente diferenciada" a esses lugares, como resultado do recente progresso social no país, gerou desordem - subvertendo o lema de nossa bandeira.
Surgiu daí um duplo ressentimento. Primeiramente, dos de cima (sobretudo dos não tão de cima) que perderam a sua distinção baseada no consumo. Depois, dos de baixo (sobretudo dos não tão de baixo) que, após ascenderem pelo consumo, passaram a almejar também o reconhecimento que supostamente poderiam lhes proporcionar as marcas da distinção (o mais das vezes "marcas" mesmo, comerciais) mas têm a porta da sociedade distinguida batida em sua cara.
O exemplo eloquente do primeiro ressentimento foi a tão difundida postagem no Facebook de uma professora universitária que debocha de um passageiro - supostamente trajado de forma indevida para um aeroporto - acompanhada por comentários de pares que lastimam a perda do "glamour" de voar - talvez existente nas propagandas da Varig dos anos setenta. Ao questionar "Aeroporto ou Rodoviária?", a acadêmica indicou lugares aos quais deveriam pertencer pessoas de maneiras, trajes e origens sociais diferentes. O problema é que a rodoviária incorporou-se ao aeroporto. E lá se foi o glamour, ou seja, a distinção baseada no consumo. Isso é particularmente doloroso para classes médias que nos últimos doze anos não progrediram tanto quanto os que vieram de baixo.
O melhor exemplo do segundo ressentimento é o rolezinho nos shoppings chiques, por jovens da periferia. Agora que têm acesso franqueado a roupas de grife, por que também não frequentar os lugares de grife? E a porta lhes bateu na cara, literalmente. Claro que há o problema do tumulto, com tanta gente chegando ao mesmo tempo. Mas esse tumulto não pareceu ser problema na inauguração da Apple Store no Rio, nem nas celebrações dos estudantes uspianos no Shopping Eldorado. Tais incongruências alimentam o ressentimento.
A perda da distinção embaralha referências até então solidamente estabelecidas. Tal embaralhamento, acompanhado pela frustração de uma continuação da melhora, seja "da porta para fora", seja "da porta para dentro", suscita ansiedades e alimenta a busca de soluções por fora das vias institucionais do Estado - que, por sua vez, não conseguiram acompanhar na mesma velocidade as mudanças sociais. E instituições estatais em descompasso com o progresso social são uma fonte propícia à desordem e, logo, à violência. Eis aí a chave do atual recrudescimento dos ânimos.
Cláudio Gonçalves Couto é cientista político, professor da FGV-SP
Fonte: Valor Econômico
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