- O Estado de S. Paulo / Aliás
• Não é preciso muito para intuir que os mais frágeis é que terão de apertar o cinto para bancar as mudanças propostas pelo governo, diz sociólogo
Quem vai pagar a conta? Para quem vai sobrar o débito da política econômica que levou o País ao fundo do buraco? Pelo menos é o que dizem: o País está arruinado. O brutal desemprego diz que sim. A inflação também. O desalento reflete essa beira de abismo em que estamos vivendo. Vai ter Bolsa Família pra todo mundo? Temos a obrigação do otimismo é o que me sugeriu uma beata no outro dia, incomodada com minha postura de estudioso.
Não é necessária muita imaginação para perceber que as medidas econômicas contra o caos que vão sendo anunciadas, como a reestruturação das relações de trabalho e a da previdência social, já revelam que a conta não será paga por quem pode mais e sim por quem pode menos. Mesmo que o governo jure de pés juntos que os direitos adquiridos serão respeitados, nada diz dos direitos não adquiridos, que são muitos neste país da informalidade, da improvisação, do provisório, do precário, da imprevidência. Mais uma vez os mais frágeis terão que apertar o cinto e a consciência para o bem de todos e felicidade geral da nação. A nação será mal agradecida, como sempre foi.
“Sua excelência, o povo”, a maior autoridade presente nas entronizações da República, como lembrou em seu belo e oportuno discurso de posse a ministra Cármen Lúcia Antunes Rocha, do Supremo Tribunal Federal, sempre teme e treme quando um novo mandatário, como o presidente recém-inaugurado, começa pelas fórmulas vencidas de inventar e nomear supostos responsáveis pelas misérias do País. Nas últimas décadas, o povo tem sido apontado, e volta a sê-lo, como o bode expiatório de nossos problemas econômicos. Somos convencidos pelos profetas da economia contabilística, a do tira aqui e põe ali, que os trabalhadores ganham mais do que merecem, os aposentados vivem mais do que têm direito. Ninguém diz o que a corrupção tem a ver com o advento da economia política das privações. Ninguém fala nos descabidos subsídios ao grande capital, no desperdício dos recursos públicos, no que nos custam os políticos e a política.
Ninguém fala em reduzir o preço que nos cobram os que nos governam pelo favor de nos governar. Ninguém fala quanto nos custa sustentar-lhes as mordomias, os carros e motoristas desnecessários, o barbeiro, a manicure, a alimentação, a moradia, tudo pago por sua excelência, o povo. Povo, aliás, que toma partido entre partidos que adotam diferentes métodos para explorá-lo, enganá-lo, lesá-lo. É uma escolha entre modalidades de maldade e de sofrimento. Masoquismo puro.
O contabilismo que nos assola é cheio de truques, cálculos e continhas para convencer o povo de que tirando da maioria sem tocar nos privilégios da minoria nos salvará. Contabilidade por contabilidade as mães de família sabem fazer a sua, melhor do que ninguém, para saber de onde vem o prejuízo. Sabem perfeitamente quanto entra na gaveta da economia doméstica e quanto lhes custa o pão, o feijão, a farinha de mandioca, o arroz, o pimentão, o brócolis, o ovo frito, o leite, o café. Se é que vão ter tudo isso. Elas sabem que sobra, cada vez mais, mais mês no fim do salário, sábio e realista argumento que ouvi mais de uma vez nos bairros operários de São Paulo em diferentes ocasiões.
Não é preciso ser um político brilhante para intuir que governo não se começa com orientações desconstrutivas como as que podem afetar direitos conquistados a duras penas por quem trabalha. A reorientação da economia brasileira preferencialmente para o mercado externo, nas últimas décadas, que nos fez retornar à condição de país agrícola, criou as bases da degradação social que fere o País profundamente. A mediação do mercado internacional equiparou o Brasil aos países cuja economia se apoia na sobre-exploração do trabalho. Em vez de competir no mercado internacional valorizando nossa indústria, como fizeram vários países asiáticos, decidimos apostar apenas na agricultura, “nossa vantagem comparativa”, que cria menos empregos e quando os cria tratam-se de empregos sazonais e pobres para pobres, não raro perto da escravidão. Desde o regime militar, a economia brasileira foi virada de cabeça para baixo. É difícil ver a saída.
A persistência do trabalho escravo no mundo, e também no Brasil, e até mesmo sua ampliação, indica com clareza que essa meta vem sendo perseguida com tenacidade. O trabalho escravo é hoje, no mundo, em termos econômicos, um item respeitável. O trabalho clandestino, a sobre-exploração do trabalho, a multiplicação das condições sub-humanas de vida, como a dos moradores de favelas e cortiços, são técnicas de redução do custo da força de trabalho. Quanto piores as condições de moradia, menor o custo de vida dos moradores e menor a demanda de salário, maior o conformismo com a migalha. São formas perversas de inserção do trabalhador no mercado de trabalho e de inclusão social. Não é estranho que as políticas sociais no Brasil tendam a se transformar na política da esmola, regida pela mentalidade do chapéu na mão à porta da igreja.
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José de Souza Martins, sociólogo, é membro da Academia Paulista de Letras. Entre outros livros, autor de A política do Brasil Lúmpen e Místico (Contexto)
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