segunda-feira, 7 de novembro de 2016

Samuel L. Jackson encontra John Wayne - Marcos Nobre

- Valor Econômico

• Ford e Tarantino têm muito a ensinar sobre a eleição nos EUA

Parece que Hillary Clinton vai ganhar. Parece. Mas, se vencer, o alívio de ter conseguido desviar de rota o Godzilla da política mundial não vai afastar o mal-estar de instituições que estão funcionando de maneira disfuncional. E não só nos EUA.

O compromisso radicalmente federativo pactuado na origem dos EUA sobreviveu a mudanças radicais na forma de construção da identidade política de cidadãs e cidadãos nos últimos 50 anos. O arranjo sobreviveu mesmo à prova mais cruel por que pode passar um país, uma guerra civil. Uma forma privilegiada de expressão das feridas e cicatrizes desse trauma foi a chamada ficção do oeste.

Embora tenha nascido bem antes da Guerra de Secessão (1861-1865), a literatura da fronteira do faroeste acabou se tornando uma forma de narração que moldou a interpretação popular do pós-guerra. Foi a precursora do western, gênero que, em determinado momento, quase se tornou sinônimo de cinema. Todo western tem como tema e pano de fundo a herança de devastação da Guerra Civil. A maneira como cada filme lida com essa herança estrutura cada obra do gênero.

Nada se compara a uma guerra civil, não tem cabimento comparar o momento atual com o horror vivido pelos EUA 150 anos atrás. Mas, sintomaticamente, o recente recurso ao western por Quentin Tarantino figurou a ruptura que caracteriza a situação presente. E isso em um momento em que o western já tinha ido parar no arquivo morto dos filmes feitos ainda em película. É o que se pode ver no díptico composto pelos filmes "Django livre" (2012) e "Os oito odiados" (2015).

No seu título e na sua inspiração, "Django livre" é um "spaghetti western", um gênero das décadas de 1960 e 1970 que fez emergir figuras como Sergio Leone ou mesmo Clint Eastwood. É muito instrutivo comparar o "Django" original, de Sergio Corbucci (1966) com o de 2012. Reza a lenda que Tarantino viu o filme em um cinema de Paris, atravessou a estreita rua Champollion, instalou-se em um bar em frente e, durante três horas ininterruptas, escreveu um argumento que já era quase o roteiro inteiro.

No filme de 1966, o protagonista Franco Nero passa o filme todo arrastando um caixão e o conflito fundamental é ditado pelo triângulo "nós contra eles" da fronteira com o México, de uma tropa de sulistas confederados, e do yankee Django. 46 anos depois, o filme de Tarantino trouxe o conflito inteiramente para dentro dos EUA e colocou a escravidão no lugar do caixão arrastado do filme original. Deslocou o gênero para dentro do período da Guerra Civil e não mais para depois de seu fim. O papel de Franco Nero no filme de 2012 é o de um proprietário de escravos que lutam até a morte de um dos combatentes.

O filme de Tarantino foi extremamente mal recebido pelos movimentos negros nos EUA. Fazer um western durante a Guerra Civil, no ano mesmo em que Abraham Lincoln assinou a "Proclamação da Emancipação" surgiu como mais um filme de homem branco que ignora a real experiência da escravidão. E, pior, usa essa experiência de horror para fins de entretenimento. De certa maneira, Tarantino tentou responder às críticas com um western clássico.

"Os oito odiados" passa-se depois do fim da Guerra Civil e decalca descaradamente o roteiro do mais celebrado de todos os westerns, "No tempo das diligências" (1939), de John Ford. Marco inaugural da retomada de um gênero que parecia ter sido enterrado nos anos 1920, o filme de Ford encena de maneira quase teatral a repactuação de um país dilacerado por uma guerra civil, traumatizado pela I Guerra Mundial e pela grande crise de 1929. Nada é como parece. Um presidiário fugido, uma prostituta e um jogador salvam o dia, enquanto o banqueiro respeitável não passa de um criminoso que tenta fugir com o produto do desfalque que cometeu.

Em "Os oito odiados", quase tudo é como parece. É totalmente ilusória a possibilidade de recompor qualquer tipo de pacto que possa produzir a unidade política que o western quis um dia encenar. Mais que isso, só restam duas saídas para o impasse de uma convivência forçada. Duas saídas que não fazem senão repor o impasse, o muro do beco sem saída: a violência aberta da carnificina ou o ódio sem subterfúgios. Não se trata de cinismo, do cinismo que ainda pode se ver em "Django livre", por exemplo. Já se está para muito além disso. Mesmo o ódio só não descamba para o assassinato quando é colocado abertamente na mesa. No original, o título do filme diz "odiosos". Não é que são "odiados"; o ódio caracteriza os personagens, é o que os constitui. Seriam simplesmente "odiados" se tivessem conseguido algum horizonte estável de convivência.

É esse horizonte de convivência que parece estar por um fio. Já não é mais suficiente nem mesmo o ardil de tematizar explicitamente a violência original que refundou os EUA como nação, ardil que estrutura outro grande western de John Ford, "O homem que matou o facínora" (1962). Não se trata mais de uma violência original que teria sido virtuosa e milagrosamente sublimada pelas instituições políticas. Aliás, mesmo no filme de Ford de 1962 essa sublimação guarda a ambiguidade venenosa do recurso sempre malandro da narração em flashback.

Não se trata de comparar estaturas, de comparar Ford e Tarantino como cineastas. Só de sugerir que uma comparação de seus filmes pode ajudar a ver algo novo que emergiu na campanha presidencial dos EUA deste ano e que os meros resultados eleitorais não vão conseguir expressar. E esse algo novo está já por toda a parte: um divórcio patente entre movimentos tectônicos na base da sociedade e estruturas políticas herdadas do século 20.

Como solução para o abismo, Donald Trump ofereceu ao eleitorado menos do que a repetição como farsa. Ofereceu um pastelão sinistro do mito fundador dos westerns clássicos. Hillary Clinton não conseguiu produzir na campanha uma imagem de futuro compatível com a gravidade estrutural da situação. Mas, se vencer, será justamente por ter se comprometido a não resolver um problema que não pode ser resolvido por uma eleição presidencial.
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Marcos Nobre é professor de filosofia política da Unicamp e pesquisador do Cebrap.

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