domingo, 11 de junho de 2017

Poderes em guerra | Merval Pereira

- O Globo

Nas democracias mais maduras, um político mentir, sobretudo se ele é o presidente da República, é razão suficiente para perder as condições de exercer o cargo para o qual foi eleito. O presidente Michel Temer tem mentido tanto nos últimos dias que seus desmentidos perdem o valor de face.

O resultado do julgamento do Tribunal Superior Eleitoral (TSE) é um desses retrocessos, num sistema, o Judiciário, que parecia a base da resistência democrática, mesmo que, algumas vezes, possa ter dado passos em falso, logo prontamente corrigidos pelos mecanismos internos do colegiado.

Estamos agora diante de algo mais grave, com a denúncia de que o relator da Lava-Jato no Supremo, ministro Luiz Edson Fachin, estaria sendo espionado pela Agência Brasileira de Informações (Abin). Considerada plausível no primeiro momento pela presidente do STF, ministra Cármen Lúcia, a ponto de ter originado uma dura nota oficial mesmo depois de um telefonema do presidente Temer para negar a ação, essa denúncia é parte de uma guerra aberta contra a Operação Lava-Jato desferida pelo presidente Michel Temer e seus aliados no Congresso e no Judiciário, o mais destacado deles o ministro do Supremo e presidente do TSE, Gilmar Mendes.

Um suposto Estado policial que estaria sendo implantado pelos procuradores do Ministério Público Federal, à frente o procurador-geral da República Rodrigo Janot, é combatido por medida (...) “própria de ditaduras, como é esta prática, contrária à vida livre de toda pessoa, mais gravosa é ela se voltada contra a responsável atuação de um juiz, sendo absolutamente inaceitável numa República Democrática, pelo que tem de ser civicamente repelida, penalmente apurada e os responsáveis exemplarmente processados e condenados na forma da legislação vigente”, como repudiou com veemência a ministra Cármen Lúcia.

A crise institucional é mais grave ainda quando se sabe que o Palácio do Planalto acusa o próprio Janot de ter tentado grampear o presidente da República, no que teria sido impedido pelo ministro Fachin. O mesmo que o Gabinete de Segurança Institucional (GSI), que deveria ser o herdeiro democrático do antigo SNI, estaria investigando com os mesmos métodos da ditadura militar para constrangê-lo por ter homologado a denúncia do empresário Joesley Batista, cujas empresas também estão sob a mira dos órgãos de controle do governo federal, que antes da denúncia nada fizeram para evitar as falcatruas de que o grupo econômico é acusado.

O ministro Gilmar Mendes quer que o Supremo vá além e também exija investigações sobre supostas ações da Procuradoria-Geral da República contra outros ministros do STF, como Dias Toffoli, Luiz Fux e Ricardo Lewandowski.

O cientista político Marcus Mello, da Universidade Federal de Pernambuco, considera que o julgamento do TSE, “mais que uma não linearidade, é uma anomalia no processo institucional recente. É produto de uma conjunção insólita pelo qual um réu se depara com uma janela de oportunidade para nomear virtualmente 30% do colegiado que vai julgá-lo às vésperas de uma eleição”.

Ele lembra que “a fortuidade” foi parcialmente fabricada, pois o presidente teve discricionariedade sobre o timing dos trabalhos, garantindo o resultado. “Maquiavel diria virtú (astúcia) e fortuna (oportunidade)”.

As consequências sobre o Estado de Direito são muito importantes e deletérias, com o descrédito sobre o Judiciário, destaca Marcus Melo, prevendo que outros atores no Judiciário e o Ministério Público irão responder à altura. Para ele, o aumento das apostas no jogo levará a uma escalada na polarização, que já começou com a Procuradoria-Geral da República no affair Joesley.

O cientista político considera que o argumento consequencialista invocado pelo ministro Gilmar Mendes sobre a instabilidade “inverte o consenso na ciência política. Toma-se a febre como causa da moléstia. O crime não é combatido pela ausência de sanções, mas, o contrário, são estas últimas que o previnem”.

Estabilidade não é ausência de mudança — mire-se o exemplo das autocracias — mas o contrário: é a prevalência da regra da lei, é fazer cumprir a lei, sobretudo quando ela é mais necessária, em situação de sua violação em escala industrial, destaca o cientista político.

Com a provável ação do procurador-geral Rodrigo Janot contra o presidente Michel Temer, teremos novos lances dessa guerra aberta, que pode incluir novos áudios que já estariam de posse do Ministério Público.

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