sábado, 20 de janeiro de 2018

Marco Aurélio Nogueira: Liberalismos

- O Estado de S. Paulo

Manifesto que defende discurso liberal na economia e conservadorismo nos costumes trava a evolução do liberalismo político

Não é de hoje que se sabe que existe liberalismo na economia, na política e no plano dos costumes. Há muitos modos de ser liberal.

Nem sempre esses três focos estão em sintonia coerente. Como há ramos distintos no campo liberal – desde sempre dividido entre um liberalismo democrático e um liberalismo conservador, passando por um liberalismo liberal –, os liberais se distribuem num gradiente flexível, que muitas vezes surpreende e confunde, levando-os ora a flertar com modalidades suavizadas de socialismo, ora a pender para um conservadorismo vetusto, mais próximo da direita.

Os que se proclamam liberais podem, por exemplo, pensar a economia segundo os dogmas da doutrina (livre-mercado, afastamento do Estado, desregulação, privatização) e ficarem abertos a políticas igualitárias de distribuição de renda, direitos e autonomia individual. Nesse registro, podem ser favoráveis à atenuação da propriedade privada e à taxação das grandes fortunas. No polo oposto, podem ser liberais em economia mas “egoístas” socialmente e conservadores em termos morais, sacrificando a autonomia individual no altar da “ordem social”.

Um dos critérios empregados (por exemplo, por Norberto Bobbio) para resolver o enigma e organizar o campo liberal é a maneira como os liberais se relacionam com a democracia política. De modo simplificado, podemos tratar a democracia em termos mais substantivos ou mais formais, isto é, mais como igualdade ou mais como regras do jogo. Historicamente, foi assim que a democracia emergiu no mundo moderno, fato que levou a que todas as doutrinas se posicionassem diante de suas duas faces. Os liberais que se associam ao componente mais igualitário da democracia tendem a caminhar para a esquerda, os demais compõem o que se costuma de chamar de “centro liberal” ou caminham para a direita. Todos os liberais, porém, aceitam o princípio da igualdade perante a lei, a igualdade dos direitos, a igualdade das oportunidades e a igualdade na liberdade, ou seja, a liberdade que não colida com a liberdade dos demais ou que não ofenda a liberdade dos outros.

Democratas e liberais convergem, também, no que diz respeito à reiteração da soberania popular, cuja tradução histórica mais bem acabada é o sufrágio universal masculino e feminino. As ideias liberais encontraram assim no método democrático o critério para se aproximarem da democracia política, o que fez da democracia parte decisiva da evolução do liberalismo propriamente dito. Nasceram assim o liberalismo radical, liberal e democrático, e o liberalismo conservador, liberal mas não democrático. E, por extensão, surgiram democratas liberais e democratas não liberais, os primeiros mais preocupados em limitar o poder e os segundos, em distribui-lo.

Lembro tudo isso, esquematicamente, para dizer que não basta alguém se proclamar liberal para que o liberalismo flua de sua mente como água pura da fonte. Há diversos liberalismos.

Manifestação típica disso pode ser encontrada no “Manifesto” que o presidente do grupo Riachuelo, Flávio Rocha, lançou em Nova Iorque propondo uma candidatura presidencial que “tenha a coerência de um discurso liberal do ponto de vista econômico” e seja “conservador nos costumes”. O empresário afirma que sua intenção é sugerir que “chegou a hora de uma nova independência: é preciso tirar o Estado das costas da sociedade, do cidadão, dos empreendedores, que estão sufocados e não aguentam mais seu peso. Chegou o momento da independência de cada um de nós das garras governamentais”.

Ele vai além, criticando os candidatos até agora surgidos que, na sua opinião, até conseguem defender políticas liberais na economia, mas “tropeçam nas questões sociais”, mostrando-se reféns do que o empresário chama de “marxismo cultural”, uma formosa jabuticaba que floresce abundantemente no Brasil do conservadorismo.

Não sobra nem sequer para Bolsonaro, que na visão de Flávio Rocha se apresenta como conservador socialmente e “de esquerda na economia”. Também Luciano Huck não é bem visto pelo empresário, por não ser suficientemente conservador nos costumes.

Rocha preside o Movimento Brasil 200, que defende uma agenda aberta para o porte de armas e fechada para questões de gênero.

A manifestação demonstra a disposição de parte do empresariado brasileiro de se envolver mais diretamente na disputa política de 2018. Mas, ao misturar alhos com bugalhos e não separar adequadamente o joio do trigo, fazendo chegar ao público uma proposta nominalmente liberal mas de fato muito pouco liberal e quase nada democrática, o manifesto de Flávio Rocha contribui para aumentar a confusão em que o país está mergulhado. Trava, em vez de impulsionar, a evolução do liberalismo político entre nós.

Afinal, se há algo de que o Brasil necessita é de clareza de propósitos. De que liberalismo estamos mesmo falando? De qual democracia? Os doutrinadores de plantão precisam assumir plenamente os postulados de suas doutrinas perante os desafios da hora presente e do estágio civilizacional em que nos encontramos.
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Marco Aurélio Nogueira é professor titular de teoria política na Unesp

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