- O Globo
A melhor atitude é se preparar para a luta. Haverá que lidar com as políticas do novo governo, defender-se delas, lutar contra elas
Diante de um perigo iminente, várias alternativas podem ser imaginadas. A primeira, a mais fácil, é a fuga. O problema é que nem sempre a fuga é possível. A segunda é ignorar o risco, fingir que não existe. Não costuma funcionar. O perigo tem uma existência objetiva, não desaparecerá se for ignorado.
As democracias estão em perigo em todo o mundo. Não suscitam a confiança que já foram capazes de despertar. Nem incentivam a participação consciente, como deveriam fazê-lo.
Não é um fenômeno apenas brasileiro. É perceptível entre nossos vizinhos e mesmo nos Estados Unidos e na Europa, berços históricos do regime democrático. Ressurgem os fantasmas dos instáveis e sombrios anos 1930, quando os corporativismos estatais, o nazifascismo e o socialismo autoritário pareciam imbatíveis.
O mundo mudou muito, sem dúvida. Contudo, a revolução informática e o processo de globalização reintroduziram em larga escala a instabilidade, subvertendo numa velocidade inaudita situações sólidas, culturas consideradas estabelecidas para sempre. Vão para o ralo não apenas bens materiais, mas concepções de vida, modos de se relacionar, afetos, sentimentos. O processo acentuou-se depois da crise iniciada em 2008: os responsáveis pela especulação desenfreada que a provocou ficaram impunes. Como usual, pagaram os trabalhadores e assalariados. O resultado é a cólera das gentes, inquietação e medo, sobretudo entre os que não encontram um lugar ao sol e, não o encontrando, não mais se encontram consigo mesmos, como se estivessem deslizando para fora da sociedade, rumo a lugar nenhum.
Este é o caldo de cultura para a emergência dos “salvadores da pátria”, líderes messiânicos, que se apresentam como capazes de mudar “tudo o que está aí”. Suas propostas têm a força da clareza e da simplicidade, canalizando angústias e ódios.
Os partidos tradicionais, mesmo os reformistas, parecem incapazes de detê-los. Tornaram-se máquinas eleitorais aristocratizadas, privilegiadas, dependentes de financiamentos privados. Perdidas suas bases estáveis e históricas, pulverizaram-se, mais interessados na autorreprodução do que nas propostas de mudanças desejadas pelas maiorias. A cada eleição, aumenta a distância entre representantes e representados. Distendem-se os laços entre a cidadania e o regime representativo. Uma vai deixando de ver no outro sua expressão política organizada. A abstenção, o voto nulo e o voto em branco atestam a tendência.
No Brasil não tem sido diferente. E se tornou difícil encarar as questões em jogo. Marcos Nobre, em recente artigo, analisou duas atitudes diante da vitória de Jair Bolsonaro. Os “amansadores” pensam que a “fera” será domesticada. Outros acreditam que as instituições serão capazes de “enquadrá-lo”. Um processo de “lulização” estaria em curso. Se Lula virou suco, por que o mesmo não poderia acontecer com Bolsonaro?
A hipótese não é nem um pouco provável, considerando-se o dinamismo adquirido pelas forças conservadoras e a disposição do “salvador da pátria” eleito.
A melhor atitude é se preparar para a luta. Haverá que lidar com as políticas do novo governo, defender-se delas, lutar contra elas. A necessária e urgente renovação da democracia não dependerá das instituições existentes —frágeis —nem dos partidos políticos, que rodam em esferas próprias, magnetizados pelas disputas eleitorais.
A defesa dos valores democráticos, nos próximos anos, estará nas mãos dos cidadãos, que deverão contar consigo mesmos para defender a própria noção de cidadania, essencial a qualquer vida democrática. Sem sinistrose e sem bravatas. Com serenidade e firmeza. A melhor tradução da política não é a conciliação sem princípios. Ao contrário: é a explicitação, regrada, dos conflitos.
A imagem que as lutas vindouras evoca é a das pessoas em passeatas nas ruas, mãos nas mãos, braços nos braços, cruzados e apertados, com medo nas tripas e coragem na alma. Ousadas, determinadas, solidárias. E nestas lutas ninguém soltará a mão de ninguém.
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