Rede de mentiras: Editorial / O Estado de S. Paulo
O presidente Jair Bolsonaro se valeu das redes sociais para compensar a baixa exposição de sua candidatura à Presidência da República no ano passado por meios ditos tradicionais, como as propagandas no rádio e na TV.
Desde o início da década de 2010, notadamente a partir da onda de protestos de junho de 2013, o papel das redes sociais na vida política do País foi amplificado. Bolsonaro soube identificar e aproveitar como poucos essa transformação no relacionamento entre os políticos e uma significativa parcela do eleitorado. Não só foi eleito presidente, como consolidou uma base de apoio fiel, acrítica e bastante ruidosa no Twitter e no Facebook, plataforma em que semanalmente faz suas já conhecidas lives, transmissões diretas e informais por meio das quais trata do que lhe vier à cabeça no dia.
Essa aguerrida base de apoiadores virtuais, cujo tamanho varia a depender de quem realiza a contagem, serve ao presidente como uma caixa de ressonância para os seus interesses imediatos, que tanto podem ser a defesa de algum projeto do governo como o ataque a seus críticos. Particularmente em relação a esta segunda “atribuição”, por assim dizer, a rede virtual de apoiadores do presidente Jair Bolsonaro é implacável. Qualquer instituição, órgão, homem ou mulher que emitam algum tipo de crítica ao “mito”, façam-lhe reparos ou apontem suas incoerências serão alvo de uma campanha de desqualificação que ultrapassa, e muito, o limite do que seria um debate democrático entre grupos sociais antagônicos.
O bando de radicais que se põem a serviço do governo, ou melhor, da pessoa do presidente da República, não hesita em caluniar, injuriar e difamar quem quer que seja quando Jair Bolsonaro está sob crítica por seus atos e palavras. Aqui parece haver uma fina sintonia entre o presidente e sua rede de apoio digital, o que sugere algum grau de coordenação.
O Estadão Verifica, núcleo de checagem de fatos do Estado, constatou a falsidade total ou parcial das informações que circularam amplamente por meio de redes sociais sobre pessoas que foram alvos de Jair Bolsonaro em sua recente erupção verborrágica.
Quando o presidente Jair Bolsonaro desqualificou publicamente o Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (Inpe) e seu então presidente, Ricardo Galvão, classificando como “mentirosos” os dados colhidos pelo instituto a respeito do desmatamento da Amazônia, a rede bolsonarista na internet logo fez circular o “depoimento” de um suposto médico do Amazonas que contestava aqueles dados científicos. As informações contidas na fala do tal médico, evidentemente, eram falsas, apurou o Estadão Verifica.
Em uma mesma ocasião, um café da manhã com a imprensa estrangeira, no dia 19 de julho, o presidente mentiu sobre o passado da jornalista Miriam Leitão, dizendo que teria sido presa a caminho da guerrilha do Araguaia, e disse que “daqueles governadores ‘de paraíba’, o pior é o do Maranhão. Não tem de dar nada para esse cara”. Ato contínuo, a milícia digital a serviço de Bolsonaro nas redes sociais fez circular a hashtag #MiriamLeitãoTerroristaSim e divulgou a informação de que o governador Flávio Dino (PCdoB) trocou a bandeira do Brasil de seu gabinete pela bandeira do partido comunista. Mais uma vez, as alegações foram desmentidas pelo Estadão Verifica.
Há vários outros casos que seguem o mesmo padrão. Eles revelam, antes de tudo, que o presidente da República e seus apoiadores mais radicais não sabem debater no mundo dos fatos, optando pela ilusão de que a permanente construção da fantasia lhes bastará para impor sem contradita a versão oficial do que quer que seja.
Há o desgaste desse próprio modo de atuação, que recorre à mentira com contumácia e, pouco a pouco, ficará cada vez mais restrito às bolhas fanatizadas que orbitam em torno do governo. Há o amadurecimento da sociedade, que haverá de superar o impacto da transformação trazida pelas redes sociais e saberá distinguir o falso do verdadeiro. E haverá sempre a tradicional imprensa profissional a desmentir mentiras e a publicar aquilo que se quer manter escondido.
Mercosul precisa harmonizar acordos com Europa e EUA: Editorial / O Globo
O avanço europeu surpreendeu os Estados Unidos, e cabe ao Brasil e à Argentina administrar os interesses
Brasil e Argentina estão diante de uma equação geopolítica: construir um acordo de livre comércio com os Estados Unidos em harmonia com o recém-assinado compromisso entre o Mercosul e a União Europeia.
É um desafio sem precedentes para a diplomacia profissional brasileira e argentina. A começar pelo fato de que a negociação precisa ser em bloco, como foi com os europeus, porque o Mercosul se baseia na política comercial e tarifa externa comuns.
Em recente visita a Brasília e Buenos Aires, o secretário de Comércio americano, Wilbur Ross, formalizou o interesse de Washington num acordo de livre comércio. Com o Brasil, requisito preliminar é concluir um tratado de investimentos.
Embora complexa, seria a etapa mais simples. "Existe uma outra situação", disse Ross, referindo-se ao acordo Mercosul-União Europeia: "Já tem um pré-acordo político de livre comércio, agora isso precisa se transformar num acordo detalhado. É importante que nada nesse acordo seja um impedimento para um de livre comércio com os EUA”, disse. “Por exemplo" — continuou —, “nós temos questões com a Comissão Europeia sobre padrões nos setores automotivo, farmacêutico, químico, alimentício e em várias outras áreas. É importante evitar obstáculos que, inadvertidamente, podem aparecer na transação do Mercosul com a União Europeia."
Soou como interessada a advertência americana sobre supostas "armadilhas" embutidas num compromisso arduamente negociado por duas décadas. Há razões objetivas para que, a princípio, assim seja vista. Afinal, até a assinatura do acordo Mercosul-UE as demonstrações de interesse do governo Donald Trump na América do Sul praticamente se restringiam a Cuba, uma ditadura a 150 quilômetros de Miami, e à Venezuela, dona das maiores reservas conhecidas de petróleo na região. Nos dois casos prevalece o interesse eleitoral doméstico de Trump em busca do voto latino para a reeleição no ano que vem, em especial na Flórida, que tem peso relevante no colégio eleitoral.
O avanço europeu no Mercosul, porém, surpreendeu e visivelmente incomodou Washington. Um eventual fracasso dessas negociações com a União Europeia, obviamente, deixaria os EUA em melhor correlação de forças com os países do Cone Sul.
O desafio na mesa da diplomacia do Brasil e da Argentina está em demonstrar capacidade e habilidade para harmonizar pactos abrangentes com europeus e americanos.
Há fatores fora de controle, como o cenário eleitoral argentino, onde o presidente Mauricio Macri tenta a reeleição numa disputa bastante equilibrada.
Há, ainda, um relevante lobby da China em contraposição à ofensiva política americana em Brasília e em Buenos Aires.
É jogo pesado, desafiante à competência e à biografia dos responsáveis pela política externa regional.
Bolsonaro em dados: Editorial / Folha de S. Paulo
Levantamento vê piora em 44 de 87 indicadores; atual governo não é o único responsável, mas está por se provar
Em tão pouco tempo de governo, é difícil estabelecer relações de causa e efeito entre as escolhas do presidente Jair Bolsonaro (PSL) e os resultados obtidos pelas políticas públicas, favoráveis ou não.
Levantamento publicado neste domingo (11) pela Folha reuniu 87 indicadores de áreas tão distintas quanto economia, educação, saúde, meio ambiente, segurança, trânsito e opinião pública. No primeiro semestre, 44 deles —pouco mais da metade, portanto— mostraram retrocesso. Em 28, notou-se melhora, e em 15, estabilidade.
Decerto que numa lista de tal amplitude haverá dados a refletir tendências anteriores à atual administração. A estagnação ou queda de recursos destinados a órgãos e programas, em particular, observa-se desde 2015, quando o governo Dilma Rousseff (PT) reconheceu, na prática, o colapso das contas do Tesouro Nacional.
Os cortes orçamentários promovidos na educação ganharam maior visibilidade, o que muito se deveu à atuação caótica do governo nessa área —com troca de ministros, amadorismo e ataques disparatados a universidades. Nesse caso, a falta de racionalidade parece mais preocupante que a de verbas.
Ainda mais evidente é o retrocesso no setor ambiental, e não apenas devido às evidências de alta expressiva do desmatamento.
A investida do presidente contra as estatísticas do Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (Inpe), sobretudo, já trouxe danos quase insanáveis para a credibilidade do governo perante o público interno e a comunidade internacional.
Do lado positivo, o bolsonarismo mais fervoroso celebra a queda geral do ainda escandaloso número de homicídios no pais. Entretanto o fenômeno já havia sido registrado, embora de forma menos acentuada, no ano passado. Ademais, não se percebe alguma iniciativa clara capaz de explicá-lo.
Na economia há maior fartura de indicadores, o que facilita uma avaliação. No plano mais imediato, pode-se dizer que a equipe de Bolsonaro acerta ao manter o controle de gastos e ao conduzir com cuidado um novo ciclo de corte de juros.
Resta saber se terá capacidade de tirar do papel sua agenda promissora de reformas, por ora restrita ao plano das ideias e declarações.
Os números do Produto Interno Bruto decepcionaram, num sinal de que Brasília ainda não conseguiu restabelecer a confiança de empresários e consumidores. Como já se disse à exaustão, a mudança na Previdência é condição necessária, mas não suficiente para tal.
Os indicadores descrevem um país empobrecido, um setor público a ser reformulado e uma sociedade polarizada. Não se deve culpar só o atual governo por esse panorama, mas pode-se apontar que ele até agora não se provou à altura dos desafios que terá pela frente
Previdência permite que país opere com juros mais baixos: Editorial / Valor Econômico
A aprovação da reforma da Previdência deverá ter efeitos positivos de longo prazo na economia, contribuindo para que os juros vigentes dentro do país continuem a sua trajetória de convergência para padrões civilizados. Mas não representam uma bala de prata: será necessário persistir na agenda de reformas fiscais e de aumento da produtividade para reduzir os níveis de risco da economia.
Em ata da sua mais recente reunião, divulgada na semana passada, o Comitê de Política Monetária (Copom) do Banco Central discute os diversos canais pelos quais a reforma da Previdência poderá contribuir para reduzir a chamada taxa de juros estrutural da economia, entendida como aquela que coloca a economia em equilíbrio, ou seja, num nível de atividade compatível com a capacidade produtiva, que não leva a aceleração nem queda da inflação.
É uma questão em aberto o quanto, exatamente, a queda dos juros estruturais poderá permitir cortes no curto prazo da taxa Selic. Essa é, certamente, uma variável que deverá ser considerada nas decisões do Copom, ainda mais num ambiente de inflação abaixo das metas e de alto nível de capacidade ociosa da economia.
O entendimento do Copom é que, no Brasil, os juros estruturais têm dois componentes principais: uma taxa livre de risco e um prêmio de risco. É uma situação diferente de economias maduras, em que o prêmio de risco é reduzido e a taxa de juros estrutural é formada basicamente pela parte livre de risco. Nessas situações, os juros estruturais são definidos basicamente por fatores que determinam consumo e poupança, de um lado, e investimento, de outro.
Nessa parcela livre de risco dos juros estruturais, a reforma da Previdência tem efeitos ambíguos e incertos. São grandes as chances de que a reforma leve a uma redução na chamada despoupança do setor público, o que na prática representa um nível de gastos acima das receitas que leva os governos a absorverem a poupança do setor privado para fechar as suas contas. Em tese, esse efeito poderia reduzir o juro estrutural.
Mas não se deve superestimá-lo. A reforma da Previdência apenas estabiliza a despesa com benefícios previdenciários em relação do Produto Interno Bruto (PIB). Uma parte relevante do setor publico - os governos locais - ainda estão fora da reforma. Além disso, será preciso observar, ao longo do tempo, se haverá mesmo uma economia de gastos ou se os governos vão apenas abrir espaço para outras despesas. Para evitar que isso ocorra, é fundamental que o teto de gastos produza os efeitos esperados.
O Banco Central menciona a possibilidade de a reforma da Previdência levar a uma mudança de comportamento da população. Com a queda dos benefícios esperados na velhice, trabalhadores tenderiam a consumir menos e a poupar mais. É provável que isso, de fato, ocorra. Essa teoria, porém, assume a hipótese de que os agentes econômicos sejam perfeitamente racionais. A experiência internacional mostra que, na prática, reformas da previdência não provocaram, necessariamente, aumento da poupança do setor privado.
A aprovação da reforma da Previdência, por outro lado, poderia ter efeitos também no aumento dos investimentos, ao reforçar a confiança do empresariado num ciclo de crescimento sustentado da economia. Esse fator, em tese, tenderia a pressionar a taxa de juros estrutural da economia.
Mas o Banco Central argumenta que, no caso do Brasil, a reforma da Previdência terá efeitos relevantes nos prêmios de risco. Esse argumento parece correto - a insustentável trajetória da dívida pública coloca pressão em todas as taxas de juros da economia. Embora não resolva todos os problemas, s mudanças no sistema de aposentadorias e pensões ajudam a fortalecer a posição fiscal do país, atenuando um risco relevante.
Igualmente importante é o efeito que poderá ter nos níveis de produtividade e na capacidade de crescimento de longo prazo da economia, quando a despesa pública dá um passo atrás e abre mais espaço para o setor privado. A fragilidade fiscal do Brasil está relacionada, em boa medida, à baixa taxa de crescimento nas últimas décadas.
Quedas adicionais dos juros estruturais dependerão da continuidade das reformas para reduzir prêmios de risco. Embora muito importante, a Previdência não garante sozinha o equilíbrio fiscal nem soluciona todas as distorções da economia que prendem o país na armadilha do baixo crescimento econômico.
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