sexta-feira, 7 de agosto de 2020

Míriam Leitão - Os segredos de Mendonça

 - O Globo

O ministro André Mendonça quer muito ser indicado ao Supremo e para pavimentar o seu caminho decidiu ser servil ao seu chefe, o presidente Bolsonaro. O problema é que ele acaba de negar ao STF o conhecimento de um documento sobre o qual paira a suspeita de ser inconstitucional, de ser um atentado aos direitos fundamentais numa democracia. E zelar pela Constituição é o coração do papel do STF. Sobre o dossiê, o ministro já teve várias posições: negou, defendeu, disse que não podia negar nem confirmar a sua existência, abriu sindicância, exonerou o chefe da secretaria e agora diz que se ele for divulgado o Brasil perde a confiança internacional.

André Mendonça está perdido em seu novelo de versões sobre o que afinal aconteceu na Secretaria de Operações Integradas (Seopi), do Ministério da Justiça. O órgão teria preparado um dossiê sobre quase 600 policiais e um grupo de professores que se declararam antifascistas, com nomes, endereços digitais e, em alguns casos, fotos, como informou no dia 24 de julho o jornalista Rubens Valente, do portal UOL. O ministro sabe o caminho reto, mas tem insistido em ficar no sinuoso. Por isso acabou derrapando: está descumprindo uma ordem judicial.

A ministra Cármen Lúcia é relatora de uma ADPF apresentada pelo partido Rede de Sustentabilidade e considerou a notícia da existência do dossiê um caso gravíssimo. E mandou que o ministro esclarecesse a questão. Ele confundiu ainda mais. Não mandou o dossiê ao STF e, ao negar esclarecimento, anexou pareceres da AGU e da própria Seopi. Num desses textos se diz que “a mera possibilidade de que essas informações exorbitem os canais da inteligência e sejam escrutinadas por outros atores internos da República Federativa do Brasil já constitui circunstância apta a tisnar a reputação internacional do país e a impingir-lhe a pecha de ambiente inseguro para o trânsito de relatórios estratégicos”. Em outro trecho, sustenta-se a tese de que seria “catastrófico” dar essa informação ao Poder Judiciário.

Então o ministro que quer uma cadeira no Supremo acha que o Supremo não pode conhecer um documento interno do governo sobre seus próprios funcionários. Documento que ele ora diz existir, ora não existir. Segundo Mendonça, “não compete à Seopi produzir dossiê contra nenhum cidadão e nem mesmo instaurar procedimentos de cunho inquisitorial”. Nisso estamos todos de acordo. O Ministério da Justiça tem uma lista de funções e entre elas não está a de fazer dossiês contra policiais, nem instalar procedimentos inquisitoriais. Só que ou o dossiê existe ou não existe. Se não existe, por que exonerar o coronel Gilson Libório? Ele trata o que houve no Ministério como um segredo tão grave que sua divulgação abalaria a república e as relações internacionais.

André Mendonça foi alçado ao cargo no vácuo da queda do ex-ministro Sergio Moro que, por sua vez, caiu porque o presidente queria controlar a Polícia Federal. Todo mundo ouviu os gritos presidenciais reclamando que seu sistema de informações e de inteligência não funcionava e que ele montara até um sistema próprio de informação. “Esse funciona, o meu”, disse Bolsonaro. Para ter uma PF sob seu controle, tinha também que ter um Ministério da Justiça submisso. Assim, com essa encomenda, André Mendonça assumiu. No dia da posse, bateu continência para o presidente e o chamou de profeta.

O presidente acha que todo o sistema de inteligência do país, e nisso ele inclui até a polícia judiciária, deve servir aos seus propósitos. O Sistema Brasileiro de Inteligência (Sisbin) é feito, sim, para preparar relatórios de inteligência e informar o governo sobre riscos para o país. Deveria, por exemplo, ter deixado o presidente minimamente informado sobre a gravidade da pandemia que se abatia sobre os brasileiros. Hoje, quando estamos perto de 100 mil mortos, ele continua demonstrando ignorância em relação ao assunto.

O risco desse dossiê é Bolsonaro estar usando a máquina do Estado para espionar seus supostos adversários políticos. E nesse caso é a democracia que corre perigo. O último país em que foi considerado crime ser antifascista foi a Itália de Mussolini. O ministro que quer ir para o Supremo não pode decidir que o Supremo não tem o direito de conhecer um documento com o qual ele pode estar ferindo princípios constitucionais.

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