O Globo / Folha de S. Paulo
O veneno está na reeleição
O tucanato, responsável pelo envenenamento
do regime presidencialista brasileiro ao patrocinar o instituto da reeleição,
voltou a namorar com o parlamentarismo. Chamam-no de semipresidencialismo por
uma questão de pudor.
Uma experiência fracassada no século
passado e rejeitada em dois plebiscitos não bastou para que um pedaço do andar
de cima nacional desistisse da ideia.
Nesse namoro, juntam-se dois blocos. Num,
estão os parlamentaristas sinceros; no outro, aqueles que temem uma vitória
eleitoral de Lula. Em 1994, quando ele parecia ser uma ameaça, a revisão
constitucional encurtou o mandato do presidente de cinco para quatro anos. Numa
trapaça da História, Lula acabou beneficiado pelo dispositivo da reeleição que
garantiu um segundo mandato a Fernando Henrique Cardoso e, em vez de cinco
anos, acabou governando por oito, de 2003 a 2011, sem abalar as instituições ou
balançar o coreto do andar de cima. Beneficiado pela mágica tucana, o PT
reelegeu não só Lula, mas também Dilma Rousseff.
A ideia de que o semipresidencialismo
limitaria os poderes de Jair Bolsonaro num eventual segundo mandato é golpista
e pobre. É golpista porque cheira ao truque de 1961, quando foi instituído o
parlamentarismo para permitir a posse do vice-presidente João Goulart. É pobre
porque um Bolsonaro, uma vez reeleito, mastigaria o regime, como Goulart
mastigou-o.
Os defensores do semipresidencialismo dizem que ele amenizaria as crises: em vez de cair o presidente, cairia o primeiro-ministro. Vira e mexe, apresenta-se a matriz do regime francês, criado pelo general Charles de Gaulle. Trata-se de uma falsidade histórica. O que De Gaulle fez na França foi o contrário, reciclou um parlamentarismo que ia de crise em crise, fortalecendo a figura do presidente. Ganha um fim de semana em Brasília quem souber o nome dos três últimos primeiros-ministros franceses. (Jean Castex, Édouard Philippe e Bernard Cazeneuve.)
A maior demonstração de que a proposta é
apenas um truque está no fato de o ex-presidente Michel Temer defendê-la,
argumentando que a praticou enquanto esteve no cargo. Ele governou olhando para
o Congresso, respeitando os adversários e amortecendo crises. Se Jair Bolsonaro
faz o contrário, o problema não está no regime, mas nele. Quem não quer vê-lo
na cadeira poderá votar noutro candidato no ano que vem. Quem não quer ver
Bolsonaro nem Lula terá tempo para achar um terceiro nome. Ciro Gomes e João
Doria estão na pista.
De 1989 para cá, o regime democrático brasileiro
elegeu cinco presidentes e defenestrou dois: Fernando Collor e Dilma Rousseff.
Contudo Dilma 2.0 foi produzida pelo mecanismo da reeleição e pela tibieza de
Lula, que não lhe pediu a vaga na chapa no pleito de 2014.
A máquina da política brasileira não rateia
por causa do presidencialismo, mas pela possibilidade da reeleição. Ela
transforma presidentes, governadores e prefeitos em mandatários que assumem as
funções obcecados pela recondução.
Fernando Henrique Cardoso já reconheceu
que, historicamente, cometeu um erro. Ele dizia não querê-la e, querendo-a,
criou-a. Tanto Lula como Bolsonaro combateram a ideia da reeleição. Sentindo o
quentinho da faixa, mudaram de ideia.
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