O Globo
Mesmo dizendo que não comentaria os áudios
de sessões do Superior Tribunal Militar divulgados no final de semana pela jornalista Míriam Leitão no GLOBO, o presidente da
Corte, Luis Carlos Gomes Mattos, comentou.
Embora visivelmente incomodado, ele disse
que nem ligou. Também certamente sabia que a reportagem mostrando as discussões
sobre a tortura imposta a presas políticas da ditadura baseou-se em gravações
do próprio tribunal, franqueadas a um advogado por decisão do Supremo Tribunal
Federal e analisadas por um historiador experiente.
Ainda assim, preferiu lançar suspeitas.
“Simplesmente ignoramos uma notícia tendenciosa daquela, que nós sabemos o
motivo, né?”
É curioso que um oficial que preside a mais
alta Corte militar e se professa um guardião da hierarquia, da disciplina e da
correção não se constranja em fazer insinuações desse naipe.
Mattos diz que as informações sobre a
tortura são tendenciosas. Por quê? Não acredita que houve tortura no regime
militar? Acha que os áudios são montados? Não quer que esses fatos históricos
sejam lembrados?
O próprio Mattos deu uma pista, na sessão
do STM: “Hoje vão buscar o passado, rebuscar o passado. Só varrem um lado, não
varrem o outro. E é sempre assim”.
É comum os defensores da ditadura
argumentarem que o regime apenas reagiu ao terrorismo dos opositores. Mas os
próprios áudios não mostram apenas que torturas como a sofrida por Míriam de
fato ocorreram. Eles também deixam patente o constrangimento dos magistrados.
Num determinado momento, o almirante Júlio
de Sá Bierrenbach afirma: “O que não podemos admitir é que o homem, depois de
preso, tenha sua integridade física atingida por indivíduos covardes, na
maioria das vezes, de pior caráter que o encarcerado”.
Como o general Mattos também deve ter tomado conhecimento dos fatos, o problema provavelmente é outro. Como diz Carlos Fico, o historiador que vem ouvindo e organizando as gravações do STM há cinco anos, a reação do presidente do tribunal evidencia uma enorme dificuldade em prestar contas à sociedade.
“É preocupante que um oficial militar fique
desestabilizado dessa forma diante de uma situação crítica. Revela até falta de
preparo psicológico.”
Outro argumento do general ao “não
comentar” a reportagem foi sugerir que haja algum motivo obscuro para a
divulgação dos áudios. “Nós sabemos o motivo”, disse, lançando outra insinuação
no ar, como se não houvesse explicações sobre o episódio.
Mas há. Tudo começou com uma postagem do
deputado federal Eduardo Bolsonaro (PL-SP), que debochou da tortura sofrida por
Míriam Leitão na ditadura. A jornalista, grávida, foi levada a um quartel para
dar depoimento. Foi torturada e ficou presa em uma sala com uma cobra.
Pois Eduardo, que questiona a veracidade da
história, não gostou de um artigo que Míriam escreveu. Em vez de rebatê-lo com
argumentos, preferiu repetir o deboche usado outras vezes por Jair Bolsonaro e
postou: “Ainda com pena da cobra”.
Foi essa postagem que levou à reportagem.
“Resolvi entregar esses áudios para a Míriam Leitão depois da ofensa que ela
sofreu de um desses filhos do atual presidente”, contou Fico à CBN. “E me
parecia ser uma maneira até de ela responder àquela agressão com provas
documentais incontestáveis da tortura, porque parece-me que o filho do
presidente duvida.”
O atual presidente do STM parece concordar
com os Bolsonaros. Para ele, as histórias de mulheres seviciadas por agentes da
ditadura são “idiotices”. “Passam-se os anos, e a pessoa diz a mesma coisa, as
mesmas besteiras, as mesmas idiotices. Nós vamos ficar respondendo?”, disse ele
na mesma sessão do STM.
A postura de Mattos deveria ser atípica e
recebida com espanto. Os militares, afinal, buscam ser reconhecidos como
servidores profissionais, que desempenham sua missão com rigor, sem levar em
conta ideologias ou preferências pessoais.
A realidade, porém, é outra. Nos
acostumamos a ver os generais ligados ao presidente fazendo insinuações contra
opositores e críticos, desconsiderando fatos graves e desprezando a obrigação
de prestar contas à sociedade.
Claro que há nas Forças Armadas gente
esclarecida e genuinamente democrática. Ao conversar com algumas dessas
pessoas, nos últimos dias ouvi mais de uma vez que o general Mattos é um homem
de outra época, uma pessoa que parou no tempo, um “fóssil que anda”.
A questão é que os fósseis povoaram o Planalto e nos impedem de ver se há mesmo dinossauros vivos na tropa. Quando a gente olha, só vê os ossos chacoalhando.
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