sábado, 2 de julho de 2022

Carlos Alberto Sardenberg: Farra fiscal produzirá herança maldita

O Globo

A coincidência não poderia ter sido pior. No dia em que se comemorava o 28º aniversário do real, ontem, o país tomava conhecimento da maior farra fiscal na era da moeda estabelecida em 1994.

A trapaça teve requintes de cinismo político. O Senado aprovou uma Proposta de Emenda Constitucional para burlar a Constituição. E, já que estavam com a mão na massa, senadores aproveitaram para jogar no lixo nada menos que três leis essenciais para garantir a imparcialidade das eleições e o equilíbrio das contas públicas: as leis eleitoral, de responsabilidade fiscal e do teto de gastos.

Para “constitucionalizar” um gasto de R$ 41 bilhões fora do teto num período vetado pela lei eleitoral, senadores se apoiaram na declaração do estado de emergência. Que emergência?

A guerra na Ucrânia — caramba, tem uma guerra!— causando uma baita emergência por aqui. Assim, em poucos dias, o Senado descobriu que tinha gente passando fome no país. Uma crise!

No mesmo dia em que o Senado votava o pacotão, o Banco Central divulgava relatório dizendo que a economia se recuperava de modo mais intenso que o esperado. E o IBGE registrava nova queda do desemprego e aumento recorde da população ocupada.

Claro, não se trata de crescimento espetacular, mas é evidente que não se caracteriza emergência. E, sim, é preciso atender os mais pobres. Mas, em vez de produzir programas sociais focados e financiados, o Senado inventou uma gastança sem limites.

Fica, pois, combinado. Daqui em diante, qualquer presidente de plantão que esteja na bica de perder a eleição pode inventar um estado de emergência e promover gastos vetados pela lei eleitoral.

Quanto mais se olha, mais a coisa piora. Apenas o senador José Serra (PSDB-SP) votou contra. Os demais senadores da oposição, incluindo os do PT, da Rede, do PSDB e do MDB, acovardados, votaram a favor do pacote bolsonarista. Sim, Simone Tebet também votou a favor.

Lula exerceu o cinismo: disse que a emenda era eleitoral e que Bolsonaro tentava comprar os pobres. Esqueceu-se de avisar os companheiros. Ou, pior, está contando com o desinteresse da população pelo que acontece no Congresso, de tal modo que as pessoas nem saberão quem votou o quê. Só que a população não está propriamente desinteressada. Na verdade, despreza os políticos.

O pacote parece um punhado de bondades. Aumenta o Auxílio Brasil, dá bolsa para caminhoneiros e taxistas, aumenta o vale-gás. Proporciona alívio imediato para os grupos beneficiados. Mas causa uma baita inflação, juros altos e desaceleração econômica mais à frente. Uma verdadeira herança maldita já contratada.

O gasto público sem receita equivalente ou sem corte de outras despesas gera déficit e dívida, que já é elevada. Com isso, o governo tem de pagar juros mais altos para se financiar. Sendo o governo um devedor grandão, os juros que paga se espalham por toda a economia. O nome disso é risco ou incerteza fiscal. Aparece no relatório do BC como uma das causas da inflação.

A inflação é um imposto especialmente cobrado dos mais pobres. E reduz os salários, como ocorre no momento. Para combater a inflação, só resta ao BC elevar os juros e mantê-los elevados por longo período. Isso torna o crédito mais caro para consumidores, compradores de casa própria e investidores. Logo, todos pisam no freio, e isso desacelera a economia, reduz a geração de empregos e deprime salários.

Simples assim.

Como a farra é geral, foi assumida também pelo, ainda, reduto maior do PSDB, o governo de São Paulo. O governador Rodrigo Garcia cancelou o reajuste dos pedágios nas rodovias estaduais, na véspera do prazo e sem aviso prévio. Rompeu contratos, gerou insegurança jurídica. Disse que pode compensar as concessionárias com R$ 350 milhões. Ou seja, subsidiará os ricos que vão de carro para Campos de Jordão com um dinheiro que poderia ser usado para postos de saúde, escolas e programas para os mais pobres.

Vale tudo.

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