O Globo
País vive alívio para abastecer o carro,
sufoco para encher o estômago
No país de 33,1 milhões de pessoas em situação de fome e onde seis em cada dez habitantes enfrentam algum nível de insegurança alimentar, segundo o inquérito da Rede Penssan, índices de preços escancaram as prioridades oficiais. No IPCA-15 (IBGE), prévia da inflação oficial, enquanto os preços da gasolina (-5,01%) e do etanol (-8,16%) caíram por cortes tributários impostos pelo governo e pelo Legislativo, o leite longa vida disparou livremente 22,27%, desde meados de junho. No Rio, R$ 10 compram um litro de leite ou quase dois de gasolina. Alívio para abastecer o carro, sufoco para encher o estômago.
Os combustíveis estão mais baratos pelo
corte no ICMS que Planalto e Congresso Nacional determinaram aos estados; à
custa de diminuição nos orçamentos de Educação e Saúde, a alíquota do imposto
caiu para 17% ou 18%. Houve também queda na cotação internacional da gasolina.
Não por acaso, a Petrobras reduziu o preço nas refinarias por duas vezes em dez
dias. O óleo diesel, que move o PIB e contamina a inflação pelo impacto nos
custos de circulação das mercadorias, e o gás de cozinha, essencial aos mais
pobres, já tinham tributação mais baixa; não foram afetados. Só neste mês, o
diesel ficou 7,32% mais caro no IPCA-15. Desde o início do ano, o índice
avançou 5,79%, enquanto a alimentação no domicílio disparou 11,42% — o dobro.
A insegurança alimentar nas famílias
brasileiras se manifesta em diferentes dimensões. A mais dramática é a fome,
quando falta comida. Mas há consequências nocivas, causadas pela dificuldade
financeira, na supressão de refeições, na redução da quantidade consumida e na
substituição de alimentos caros por baratos. De julho de 2021 a junho deste
ano, dos 20 itens que mais subiram de preço nos mais de 370 pesquisados pelo
IBGE para calcular o índice da meta de inflação, o IPCA, 16 são alimentos in
natura ou minimamente processados: da mandioca (+35%) ao café (+62%), do leite
(37%) ao tomate (67%), da cebola (60%) ao mamão (+74%), da cenoura (+84%) à
batata-inglesa (+76%).
— Vários itens essenciais da dieta popular
estão com alta elevada. Por isso o povo opta por alimentos ultraprocessados
(caso de linguiça, nuggets, macarrão instantâneo e achocolatados), troca almoço
por lanche, piora a alimentação. Os ultraprocessados subiram de forma mais
coerente com o IPCA ou até abaixo. Assim, acabaram ficando mais baratos em
relação aos mais saudáveis — analisa Arnoldo Campos, economista, ex-consultor
da FAO e do Banco Mundial,
especialista em agricultura familiar.
A escalada no preço da comida é
consequência também de uma conjuntura internacional agravada pela guerra na
Ucrânia, pela demanda aquecida no pós-pandemia, por problemas de produção e
circulação global das commodities agrícolas. Por aqui, na última década, o
governo desativou armazéns e abandonou os estoques reguladores, que ajudariam
no abastecimento e na calibragem de preços dos alimentos. Reportagem da Agência
Nossa mostrou que, no primeiro semestre, chegaram ao fim as reservas de trigo e
despencaram as de milho, arroz e café; de mandioca não havia desde 2021. Paula
Johns, socióloga que integra o comitê gestor da Aliança pela Alimentação
Adequada e Saudável, atribui a políticas equivocadas, inclusive tributárias, o
desajuste nos preços da comida:
— Sobem mais os alimentos que deveriam ser
mais acessíveis. Quanto pior para a saúde, mais incentivo fiscal recebem. As
pessoas com mais vulnerabilidades, que já sofrem com as doenças crônicas não
transmissíveis, ficam ainda mais fragilizadas.
Os efeitos são graves no curto, médio e
longo prazos. A ingestão insuficiente de calorias subtrai capacidade de
aprendizagem de crianças e jovens, produtividade dos adultos no trabalho, vida.
Pressiona o sistema de saúde, destaca o ex-ministro da Saúde, médico e deputado
federal Alexandre Padilha (PT-SP):
— De um lado, a fome, a desnutrição, o
aumento de internações, principalmente de crianças, impactando os serviços de
saúde. Outra face da insegurança alimentar é a piora dos hábitos da população,
exatamente pela inflação dos alimentos in natura e pelo preço do gás de
cozinha. Famílias mais pobres estão migrando para alimentos ultraprocessados,
que levam à ingestão de mais gordura, sal e conservantes. Isso provoca ou
agrava doenças crônicas, como obesidade, problemas cardiovasculares e até
câncer.
A espiral da insegurança alimentar no Brasil é criminosa do ponto de vista humano, irresponsável no aspecto político e estúpida sob a ótica da responsabilidade fiscal. Precisa ser combatida. E já.
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