O Estado de S. Paulo
Desacreditar como fraudulenta a urna é ludismo de militares retrógrados que expõem a vulnerabilidade de nossas Forças Armadas
O voo solo, duplo e rasante da águia
americana sobre o papagaio brasileiro usou duas notas diplomáticas como o mais
poderoso sistema de armas da democracia em tempos de paz para produzir
desengajamento. Sem infligir danos materiais e exigir esforço complexo,
produziu a rápida neutralização externa do inimigo da verdade, esvaziando sua
capacidade de ação ou evasão. Uma interação exemplar de ação tática,
estratégica e política mostrando a artificialidade de querer dar a um
equipamento mecânico expressão mais versátil do que aquela a que se destina.
Sim, quando o encarregado de negócios expôs de Brasília a verdadeira intenção da reunião com os embaixadores, iniciou a redação da mensagem de Washington em que o porta-voz do governo norte-americano afirma que não quer como aliado um Trump oferecido e conspícuo em crise. De certa forma, pressentiu que a reunião tinha caráter separatista.
Foi ele, sim, o presidente, que quis usar
governos estrangeiros para extrair coragem para sua falta de autoridade.
Comunicou a embaixadores que pretende resistir e retaliar, com ações e leis não
escritas, ao resultado das eleições de outubro. E, ao deixar de fora alguns
países, definiu a reunião nos termos de uma associação íntima, supondo poder
pedir cumplicidade para resolver questão interna brasileira. Deu com os burros
n’água e sua intenção, como náusea, apenas fluiu na garganta da Nação.
Teses alarmistas e correntes – e testadas
sem sucesso pela provocação da presidente da Câmara baixa norte-americana em
viagem fútil a Taiwan – andam circulando nos meios acadêmicos tentando
convencer o governo dos EUA de que está montada a Armadilha de Tucídides nos
destinos do país. Desde que a Universidade Harvard fez a releitura da Guerra do
Peloponeso, passou-se a divulgar a ideia de que é uma tendência inevitável
acontecer de uma potência ascendente (ontem Atenas, hoje China) acabar sendo
invadida por uma que começa a perder a hegemonia (ontem Esparta, hoje EUA).
O presidente deve ter sido informado da
tese por maus militares que veem a diplomacia como atividade de indolentes. E
logo viu a chance de se oferecer como soldier blue contra a ameaça vermelha.
Tirando a implausibilidade da tese, o governo não se deu conta de que é de
envergonhar Esparta precisar de aliados tão atrapalhados no gigante do Cone
Sul. Os diplomatas foram convocados para o presidente dizer que tem de ganhar a
eleição de qualquer jeito para ajudar os EUA no conflito.
Conflito que não querem, contra a China. O
mundo atual é maior do que a Grécia antiga, com Ocidente e Oriente
interdependentes. A urna eletrônica entrou como galhofa da transição de poder
em Tucídides, baboseira de politicólogos recheando a cabeça de governantes
insensatos.
Há, no entanto, outra explicação para as
afrontas do presidente à inteligência dos embaixadores. Quem,
presunçoso-desinformado, sem medida ou deveres, e ainda se vê absorvido pela
política de forma complacente usa a democracia como interlúdio adequado para
governar por conflitos e confrontos. O presidente é um arcaico amargo, contra a
ciência, o progresso e a razão. Por isso a autoria intelectual da reunião deve
ter sido inspirada em militares ludistas que o cercam, uma contradição no país
da Embraer e com programa de submarino nuclear.
Ned Ludd, personagem fictício criado pelo
movimento operário inglês no século 19, estimulava a quebra das máquinas que
substituíam o tear manual no início da industrialização. O movimento destruía
fábricas, falava da fraude e do engano acusando o progresso de criar o
desemprego. Só foi detido quando o Parlamento propôs a pena de morte para os envolvidos.
Como o Parlamento brasileiro é que se faz de morto, o presidente faz o que quer
andando por aí, travesso, de velocípede de idoso.
Desacreditar como fraudulenta e enganosa
uma máquina eletroeletrônica de circuito fechado, com software próprio, prevista
no Código Eleitoral de 1932, marca brasileira, usada desde os anos 1990, que
registra, coleta, armazena e contabiliza os votos dos eleitores de forma
totalmente digital, é ludismo de militares retrógrados que expõem a
vulnerabilidade de nossas Forças Armadas envolvidas com metas políticas e
intenções agressivas.
Não há solução militar para toda meta
política nem saída legal para resolver falta de voto com solução de força.
Diferentemente de vários países igualmente democráticos, no Brasil o voto em
urna é a única certificação que confirma o vencedor. Não há outra.
Saber da vulnerabilidade do aliado é
elemento essencial de uma boa política de defesa. O que os embaixadores
pressentiram é que nossa soberania é atualmente secundária, pode ser
desrespeitada por amigo, fronteiras violadas com apoio de aliados internos.
Crime de lesa-pátria.
O governo brasileiro vem tornando medíocres
todos os assuntos de democracia, segurança e defesa, podendo tornar o País
ingovernável. A Carta às brasileiras e aos brasileiros em defesa do Estado
Democrático de Direito, da USP, contém um quê da intuição de Churchill. Porque
o povo, sem vigília, é sempre desmentido em seu sonho, quando não vê como
indecente a máscara de poder sem decência.
*Sociólogo
Um comentário:
Boa análise.
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