Folha de S. Paulo
Não é delírio, é plano pensado, financiado
e autorizado
Enquanto teu tio desocupado passa a tarde
na frente do quartel pedindo golpe e comendo churrasco na cadeira de praia com
amigos de clube, seu parceiro de cerveja planeja
atentado a bomba para aterrorizar o país. Atiçados pelo presidente da
República e tolerados por agentes públicos, os executores do terror podem te
matar sob o grito da pátria e da liberdade. Não é delírio, é plano pensado,
financiado e autorizado.
No dia da diplomação de Lula, a violência
coordenada pelas ruas de Brasília demonstrou, para quem duvidava, que
os revoltosos que bloqueavam estradas e depois acamparam em circunscrições
militares estão envolvidos em atividade criminosa. E que se beneficiam da
complacência da cúpula governamental e militar.
Carros e ônibus queimados nas ruas evidenciaram a natureza do movimento. Autoridades de inteligência não só não os monitoraram como os acalentam na prática e no discurso. Nunca funcionou assim com movimentos que pedem justiça social.
O combo de crimes cometidos por cidadãos e
autoridades de diversos níveis envolve abolição violenta do Estado democrático
de Direito (art. 359-L, do Código Penal); incitação (art. 286, parágrafo
único); associação criminosa (art. 288); crime de omissão imprópria de
autoridades que têm dever de proteger indivíduos e patrimônio. Além de um
variado conjunto de crimes conexos: de dano, de incêndio, de tentativa de
homicídio etc.
Dias depois, por força do acaso (e por
aviso de cidadão desconfiado), descobriu-se plano de atentado a bomba de grande
proporção. Um empresário e atirador esportivo planejava
provocar "decretação do estado de sítio" e "intervenção
das Forças Armadas". A explosão ocorreria nos arredores do aeroporto e de
subestação de energia. Em sua casa se encontrou arsenal de armas e explosivos
ilegais.
Silêncio
nos gabinetes do Planalto.
Não sabemos o que pode ocorrer na posse
presidencial. Não é perigo genérico, ordinário e imprevisível, presente em
qualquer grande evento. É perigo específico, extraordinário e previsível,
facilitado pela leniência de autoridades irresignadas com a derrota eleitoral;
e por grupos civis ilegalmente armados e embrenhados no extremismo
bolsonarista.
Juristas têm desencorajado analistas
políticos a usar o termo "terrorismo" para nomear o que assistimos.
Explicam que, na lei brasileira, o crime de terrorismo só ocorre quando atos
que intentam provocar pânico generalizado sejam motivados por "xenofobia,
discriminação ou preconceito de raça, cor, etnia e religião", não por
"manifestações políticas". Há uma variedade de crimes, mas não o de
"terrorismo".
A ressalva jurídica ("pela lei, o
crime não é de terrorismo") está certa. A recomendação terminológica
("não falem em terrorismo") está errada. Porque a lei e o direito não
têm monopólio da linguagem crítica da política e da moral.
Se aviões da Al Qaeda derrubassem as torres
gêmeas do Congresso Nacional, a lei brasileira não qualificaria como crime de
terrorismo. Mas seria terrorismo conforme seu conceito quase universal
(presente não só em leis estrangeiras e convenções internacionais, mas na
teoria social): ato violento, com potencial de causar dano massivo à vida e à
infraestrutura, que afeta civis inocentes e gera pânico para intimidar
população e governo.
O bolsonarismo, enfim, escancara sua face
terrorista. Face presente já na origem da biografia pública de Bolsonaro, que
ameaçou explodir bomba contra instalações militares por melhores salários nos
anos 80 (leia o livro "O Cadete e o Capitão", de Luiz Maklouf).
Existem autorizadores primários do terror:
Bolsonaro, que mescla reclusão com incitações cifradas à "defesa da
pátria"; as Forças Armadas, que não rechaçam publicamente pedidos de golpe
e ataques ao resultado eleitoral, deixam ventilar interpretações alucinadas do
art. 142 da Constituição, e tratam a pão de ló os patriotas no seu quintal; e
Augusto Aras, cuja omissão está sacramentada nos anais.
Aras é o primeiro PGR da história a ser
publicamente instado a agir por procuradores da República. É praticante da arte
dos gestos ilusionistas e declarações anódinas. Referiu-se a movimentos
golpistas como "rescaldo indesejável, porém compreensível", assegurou
que "monitora" protestos e lembrou que criou "grupo de combate
ao terrorismo". O grupo nada fez de concreto, exceto despertar risos
involuntários em Flávio Dino.
Dino, ministro da
Justiça de fato, ainda não de direito, já pratica atos de governo. Alexandre
de Moraes suspendeu porte de armas na capital. Bolsonaro deve se
ausentar do país antes da posse numa viagem com vasto uso de recursos públicos.
A legalidade da fuga disfarçada, se ocorrer, é burlesca. Seu fim é patético. E
deixa órfãos nos quartéis.
*Professor de direito constitucional da USP, é doutor em direito e ciência política e membro do Observatório Pesquisa, Ciência e Liberdade - SBPC
3 comentários:
Texto maravilhoso! Do terrorismo bolsonarista à fuga do GENOCIDA!
Ótimo texto.
"E que se beneficiam da complacência da cúpula governamental e militar."
Por isso penso q Mucio tá sendo muito mole. Mas tb creio q o novo governo saiba o q faz ‐ merece crédito. A cúpula governamental complacente tá saindo - o mesmo com a miliquenta, torço.
Conrado Mendes é muito bom,escreve sempre com competência.
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