domingo, 8 de janeiro de 2023

Bernardo Mello Franco – Juntar os cacos

O Globo

Passada a festa das posses, novo governo precisará de foco e senso de urgência; extrema direita perdeu eleição, mas continuará à espreita

Espantar o tempo feio. Sair do fundo do poço. Desconjurar a ignorância. Desmantelar a força bruta. Os versos de “Que tal um samba?” embalam a nova turnê de Chico Buarque, que chegou ao Rio na quinta-feira. A letra também pode servir de roteiro para a tarefa de reconstrução do país.

A primeira semana do governo Lula lembrou o fim de um longo sequestro. Os discursos refletiam o alívio com a derrocada de um projeto obscurantista. “Encerra-se neste momento a era de um presidente que se disse orgulhoso de defender a tortura”, proclamou o professor Silvio Almeida ao assumir o Ministério dos Direitos Humanos.

Escolhido para resgatar uma pasta capturada pelo fundamentalismo religioso, ele se desculpou por dizer o óbvio: o Estado não pode ser usado para promover o autoritarismo, a violência e o preconceito. Trabalhadores, mulheres, pretos, indígenas, homossexuais, deficientes e sem-teto existem e merecem atenção do poder público.

O obscurantismo também ameaçou a sobrevivência de rios e florestas. “O que vimos nos anos que se passaram foi um completo desrespeito pelo patrimônio socioambiental brasileiro”, afirmou Marina Silva ao reassumir o Ministério do Meio Ambiente. Ela lembrou o incentivo oficial ao desmatamento, o abandono das terras indígenas, a perseguição a servidores que tentavam cumprir sua missão. “O Brasil, que antes era um expoente ator na esfera global, passou a ser visto como um pária”, resumiu.

A necessidade de recuperar a imagem do país deu o tom da posse de Mauro Vieira nas Relações Exteriores. “Estivemos alijados do cenário internacional por força de uma visão ideológica limitante”, disse o chanceler. Foi uma forma diplomática de criticar o extremismo que se apossou da política externa no governo Bolsonaro.

No mesmo salão em que o olavista Ernesto Araújo rezou uma Ave Maria em tupi e comparou o capitão a Jesus Cristo, o novo chanceler indicou que o Itamaraty voltará aos trilhos da racionalidade. Prometeu normalizar as relações com países vizinhos, apostar no multilateralismo, reposicionar o Brasil no combate à emergência climática.

Nomeada para o Ministério da Saúde, Nísia Trindade abriu seu discurso com um apelo para que todos se vacinem. Seria trivial se o país não tivesse convivido com um presidente que negava a ciência e sabotava medidas sanitárias em plena pandemia.

Para além das palavras, a ex-presidente da Fundação Oswaldo Cruz anunciou medidas práticas. Vai revogar todas as portarias e notas técnicas que ofendem a ciência, os direitos humanos e os direitos sexuais reprodutivos. Para conter a euforia dos otimistas, ela lembrou que vêm aí “tempos difíceis de reconstrução”. “Sabemos que nosso país tem pressa, que nossa sociedade tem pressa”, reforçou.

Passada a festa das posses, o novo governo precisará de foco e senso de urgência. Os desafios são complexos, e a tolerância com erros será pequena, como mostram as críticas à nomeação de uma ministra ligada a milicianos. A extrema direita perdeu a eleição, mas continuará à espreita. Hora de juntar os cacos e ir à luta, como ensina o samba de Chico.

 

2 comentários:

Fernando Carvalho disse...

O Boçal deu uma pensão de marechal para o torturador Lambuzado Ustra. O novo governo tem que desfazer isso.

ADEMAR AMANCIO disse...

A extrema-direita continua com tudo.