O Estado de S. Paulo.
O leitor consegue imaginar um país onde os ricos estudem de graça nas melhores universidades e a pequena classe média estude à noite em instituições medianas?
Pelo que sei, a situação oftalmológica
individual dos brasileiros tem melhorado muito, mas a do País como um todo, nem
tanto. Nunca enxergamos muito, e nada indica que estejamos melhorando.
Tentarei esclarecer meu argumento. Sabemos que alguns países enriqueceram notavelmente. Outros decolaram, mas estancaram num nível mal e mal aceitável, ou regrediram. Não me consta, porém, que algum tenha dado certo começando pela distribuição da pobreza, quero dizer, distribuindo o que não tinha e deixando para depois a realização de suas aspirações. (Se é que aspirava a alguma coisa.) Neste último caso, o disparate seria ainda maior se, além da inversão do curso lógico das coisas, tal país sofresse da já referida deficiência oftalmológica coletiva. Neste caso, nem sequer perceberia que estava buscando o levante pelo poente.
Nossa história registra bons exemplos.
Durante a campanha presidencial passada, o presidente Lula parecia outra
pessoa. Em diversas ocasiões, dirigiu-se ao País num tom surpreendentemente
moderado, sensato, diria mesmo lúcido. Parecia disposto a deixar de lado a
pequena política e mobilizar os agentes produtivos (indivíduos e empresas...)
para um esforço abrangente e enérgico de crescimento e promoção do bem-estar
social. Não descarto que nutra realmente tal intenção. O problema é que não há
como levar avante tal desejo sem efetivar as reformas que temos estado a
debater há vários anos, e que não são bolinho, exigem confronto com interesses
ponderáveis.
Começando pela reforma do Estado. Sabemos
todos que o alfa e o ômega de nosso marasmo é o chamado patrimonialismo, quero
dizer, algo da colonização portuguesa e uma classe de pseudoempresários
(privados e estatais) e uma multidão de grupúsculos corporativistas que se
formaram à sua sombra. Argutos, aproveitaram as oportunidades que o nosso
Estado em formação lhes abria e se entrincheiraram não só na máquina
burocrática (nosso proverbial empreguismo), mas em todo este emaranhado que
designamos como classe política, eleita segundo normas que eles mesmos se
incumbem de elaborar. Perspicazes, incrustaram seus supostos direitos na
legislação, nos três níveis de governo. Patrimonialismo é isso. É uma máquina
de Estado profundamente disfuncional e que mal consegue fechar suas contas
anuais porque as benemerências que o rei reparte com seus amigos custam caro.
Mas, claro, um país continental, repleto de
riquezas naturais, incapaz de se defender no caso de um hipotético ataque
externo, não podia acomodar-se ad aeternum nesse marasmo. Era mister promover o
crescimento econômico, e para tanto era imperativo costurar uma estratégia.
Mas, não tendo um verdadeiro empresariado, nem grande nem pequeno, haveríamos
de nos abalançar à empreitada com o que tínhamos à mão, ou seja, com os
próprios beneficiários do patrimonialismo. Crescimento, como se sabe, é uma
coisa muito simples. Primeiro, é preciso investir. No ano seguinte, separar uma
parcela do produto para reinvestimento. No terceiro ano, um pouco mais, e
assim, em tese, a máquina se põe em marcha.
Mas há alguns senões. Se a economia cresce
muito pouco, a arrecadação também cresce muito pouco. A população cresce alguma
coisa (às vezes, muito) e uma parte dela se organiza para pleitear sua parte.
Então, é preciso investir mais e os trabalhadores têm de se tornar mais
produtivos. Se os recursos disponíveis para investimento são escassos, só
existem três alternativas: 1) desmontamos o patrimonialismo, e isso Lula parece
ter descartado já em seus primeiros solilóquios; 2) atrair capital estrangeiro
e dinamizar o setor privado; isso todos nós, patrióticos, abominamos; 3)
pegamos o pouco que possamos obter via arrecadação e adicionamos o que falta
arrecadando de maneira mais escorchante e injusta, endividamento, inflação e
sal a gosto. Este terceiro ponto foi o núcleo da estratégia que vem nos
arrastando desde a Revolução de 30: o chamado nacional-desenvolvimentismo. Com
ele, logramos um crescimento razoável, mas um dia demos de cara com uma enorme
pedra no meio do caminho. Paramos.
Paramos porque os beneficiários do modelo
estavam bem acomodados e não se deram ao trabalho de educar as novas gerações e
desenvolver ciência e tecnologia. O leitor consegue imaginar um país no qual os
ricos estudem de graça nas melhores universidades e a pequena classe média
estude à noite em instituições medianas? Se não consegue, olhe em volta, o
Brasil é assim. Isso nem Karl Marx toleraria. Em 1867, num documento intitulado
Crítica ao Programa de Gotha, ele desceu a lenha em alguns Estados
norte-americanos que canalizavam dinheiro público para os filhos de seus
“burgueses”. Mas ele podia ao menos ressalvar que lá, pelo menos, o ensino de
ciência e tecnologia decolava velozmente. Entre nós, o que a pequena classe
média aprende (?) à noite é Direito, na velha tradição da contrarreforma. Nessa
área, somos um portento: já ultrapassamos a marca de 2 mil faculdades! A
maioria não conseguirá auferir ao longo da vida o que pagou em anuidades.
*Sócio-Diretor da Consultoria Augurium, é
membro das Academias Paulista de Letras e Brasileira de Ciências. Seu mais
recente livro é ‘Imagens da virtude e do poder’ (São Paulo: Editora Desconcertos)
2 comentários:
O que o Sr pensa dos balões aparecendo em 40 países e 5 continentes enquanto o Lula debate uma dúvida atroz de sua governança, o que fazer com o Presidente do BC? Brasil nunca será um país sério com esses governos que temos, Sai um bestalhão entra outro.
Já há mais adevogados que clientes.
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