O Estado de S. Paulo
O PT no poder esteve e está imerso em dilemas semelhantes aos da social-democracia alemã no final do século 19 e nas primeiras décadas do século 20
A social-democracia alemã, no final do século 19 e nas primeiras décadas do século 20, era um partido marxista inserido numa sociedade capitalista que se desenvolvia rapidamente, graças à indústria têxtil e, depois, à mineração e à metalurgia. Na perspectiva marxista, sua finalidade última (Endziel) era a implantação de uma sociedade comunista, baseada nos avanços da “luta de classes”, tendo como desfecho a revolução, identificada à salvação da Alemanha e da humanidade enquanto tal. No entanto, tal formulação era de pouca valia na condução dos assuntos corriqueiros e práticos do partido, que tinha se tornado uma grande organização, baseada em sindicatos fortes, com uma folha expressiva de salários e tendo suas próprias empresas, das quais extraía lucro.
Politicamente, propugnava pelo sufrágio
universal, pela defesa da democracia, pela liberdade de imprensa (o partido era
proprietário de vários jornais importantes) e por constituir uma forte
representação parlamentar. Em seu combate social, estava voltado para a
consolidação da previdência para os trabalhadores (implantada por Bismarck),
melhores salários, redução da jornada de trabalho, entre outras medidas de
melhorias sociais. Acontece, porém, que havia uma contradição evidente entre a
narrativa marxista, com seus objetivos revolucionários, e a prática do partido,
que era essencialmente reformista, voltada para uma luta no interior da
sociedade capitalista.
O secretário-geral do partido, August
Bebel, um homem pragmático, procurava equilibrar-se entre a retórica marxista e
uma prática dela distante. Na sua ala mais à esquerda estava Rosa Luxemburgo,
de pouca influência no aparelho partidário, pregando a revolução e o levante de
massas do proletariado. Em sua ala mais à direita estava Eduard Bernstein,
companheiro de Engels no final de sua vida e homem atento às mudanças em curso
na economia, na sociedade e na política. Foi o grande teórico reformista de sua
época, rompendo com a revolução e o marxismo, e propugnando pelo reconhecimento
teórico da prática social-democrata. Quase terminou, por isso, expulso do
partido, e não o foi graças à intervenção de Bebel e de Victor Adler, líder da
social-democracia austríaca. Aliás, Bernstein foi a grande orientação da
social-democracia alemã do pós-guerra, tendo sido uma figura emblemática para
Willy Brandt, depois chanceler da Alemanha.
O PT no poder esteve e está imerso em
contradições e dilemas semelhantes. Em seu primeiro mandato, Lula adotou uma
prática reformista, seguindo as regras de uma economia de mercado, seguindo os
passos de seu antecessor Fernando Henrique Cardoso. Sem dizê-lo, filiava-se à
mesma linha social-democrata. Ampliou os programas sociais, tendo sempre em
vista a melhoria das condições dos trabalhadores e dos desempregados. Contudo,
a retórica esquerdista continuava. O MST funcionava como seu braço
revolucionário, desrespeitando propriedades privadas e as invadindo.
Teoricamente, essa organização auxiliar do PT fundava-se na “luta de classes”,
combatendo por uma sociedade comunista.
O partido ainda se baseava na consideração
da democracia não como valor universal, mas como instrumental na conquista do
poder. O namoro com ditaduras de esquerda continuou – e continua –, tendo se
traduzido, inclusive, pelo apoio explícito ao Foro de São Paulo, organização internacional
dos partidos de esquerda, de orientação comunista. Note-se que essa filiação
foi negada na campanha eleitoral de então. A política externa prosseguiu,
portanto, nessa mesma linha, obedecendo a diretrizes anti-imperialistas, a
saber, antiamericanas.
Agora, Lula enfrenta sérias dificuldades em
se reconhecer plenamente em sua prática reformista. Considera qualquer regra de
mercado um entrave para seus objetivos políticos, advogando pela
irresponsabilidade fiscal e fazendo troça acerca de qualquer medida de
saneamento das contas públicas. Em consequência, ataca sistematicamente o Banco
Central. É como se uma economia de mercado fosse para ele algo completamente
alheio, coisa da Faria Lima, como se uma sociedade capitalista fosse uma mera
conspiração nacional de grandes empresários e banqueiros. No momento oportuno,
pensa negociar com eles, seja lá o que isso signifique.
A demagogia esquerdista exacerba-se em
razão de suas contradições, que se traduzem pela falta de medidas
governamentais. O MST, enquanto braço revolucionário, retoma suas invasões,
consideradas meios de sua luta política. A política externa acompanha o mesmo
curso, com forte retórica antiamericana (anti-imperialista), alinhando-se com a
China comunista e a Rússia, herdeira do stalinismo. A neutralidade diplomática
se perde nas brumas dessa aliança, relegando o País à posição de mero
coadjuvante. Chega-se à mais absurda das incoerências ao equalizar a Ucrânia e
a Rússia como responsáveis pela guerra. A potência invasora e o Estado invadido,
ou, em outra linguagem, o criminoso e sua vítima são igualmente culpados.
*Professor de filosofia na Ufrgs
5 comentários:
"Essa do criminoso e sua vítima" é muito boa! Dá até para comparar com a Lava Jato: os bandidos viraram mocinhos.
Vândalismos devem ser punidos!
-Os vândalos* do "08deJaneiro" precisam ter punição;
-Os vândalos demais, como os do MST, precisam ter punição também!
▪O petismo é muito manipulador e se não houvessem os fatos do "08", dos vândalos do bolsonarismo, petistas certamente reagiriam com xingamentos e desqualificações contra quem identificasse como vândalos ativistas delinquentes do MST.
Tomara que esta polarização consiga educar um pouco os petistas para a democracia; e a bolsonaristas também!
*E que nas apurações do "08deJaneiro" sejam identificados e punidos casos mais graves que vandalismos, como terrorismo, se houve.
A invasão dos sem terra precisa ser contextualizada,parece que nada é tão simples assim.
Aleluia,voltou a seção dos comentários!
▪Invasão de terras produtivas é vandalismo em qualquer contexto.
▪Invasão de Fazendas Experimentais e áreas de Ciência e Pesquisa é inominável.
Afora delinquências assim, manifestações do MST e de organizações em geral são legítimas, desde que ocorram sem ameaças à democracia.
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