domingo, 17 de dezembro de 2023

Dorrit Harazim – Brincadeirinha

O Globo

Trump deseja vingança contra seus opositores políticos, contra o cerco jurídico que se estreita

Sem querer estragar o Natal de ninguém, é bom ficar atento desde já: 2024 será o ano de Donald Trump. Seja como reeleito para a Casa Branca, seja como condenado num dos quatro processos criminais a que responde, ou ainda como figura que a toda hora ameaça atear fogo às vestes para dominar o noticiário. Neste último quesito, ele é imbatível. Em recente entrevista à emissora de maior audiência no país, declarou que atuará de forma ditatorial se reeleito — mas somente no primeiro dia de governo. Boa parte da grande imprensa deu-lhe o que ele queria: a manchete, seguida de incredulidade ou pouco-caso. David Brooks, o colunista conservador do New York Times, resumiu essa postura ao escrever que, desta vez , não levou as palavras de Trump a sério, pois eram mera brincadeira com seus seguidores. A claque, de fato, adorou.

Exímio comunicador que comandou 14 temporadas de “O aprendiz” antes de se interessar por política, Trump está testando o terreno. Desde a entrevista, faz questão de encaixar o novo epíteto “ditador por um dia” em comícios aqui e acolá. O truque de repetir algo extravagante à exaustão até que seja normalizado é velho, porém eficaz, pois entorpece a crítica. Ele sempre recorreu ao expediente e, quando bate num muro de resistência, sai-se com um “era só brincadeirinha para irritar a mídia”. Vale lembrar que, antes de perder a eleição para o democrata Joe Biden em 2020, Trump aventou a hipótese de ficar no poder muito além dos dois mandatos permitidos pela 22ª Emenda Constitucional. Brincadeirinha...

O esboço de seu programa de governo para um eventual segundo mandato destaca não só o que deixou inconcluso, como a intenção de alargar todos os poderes federais, a começar pelo dele. O ponto de partida seria a deportação em escala inédita de refugiados e imigrantes sem documentação legal. Em seguida, facilitaria a demissão de servidores públicos federais não trumpistas, instituindo um teste novo para 2,87 milhões de funcionários com estabilidade. Prioridade também para o desmantelamento do Departamento de Estado, da burocracia pantagruélica da Defesa e dos serviços de inteligência que, no seu entender, impedem os Estados Unidos de voltar a ser grandes.

— Em 2016, declarei que seria a voz de vocês. Hoje — prometeu em comício recente — acrescento que serei o guerreiro, o justiceiro de vocês. Todos os traídos e injustiçados terão em mim seu vingador.

Pela proposta de Trump, a ortodoxia conservadora de Ronald Reagan, segundo a qual governo é problema, não solução, será enterrada. Sob sua autoridade, o poder do Estado será ampliado e deverá atuar em questões que historicamente sempre foram da esfera estadual.

Um dos projetos abandonados no primeiro mandato por ter sido considerado inexequível foi ressuscitado com os mesmos contornos exóticos: a abertura de uma licitação nacional para a construção de dez cidades novinhas em folha, do tamanho de Washington (177 km2), erguidas em terrenos federais sem uso. Essas cidades futurísticas, moldadas em projetos urbanísticos de regimes repressivos como Emirados Árabes Unidos e Arábia Saudita, seriam controladas. A segurança estaria em mãos de uma “superforça policial”, informa o Washington Post.

No mesmo embalo, Trump estipulou que a arquitetura urbana em cidades já existentes deverá seguir o “estilo clássico americano”; ruas e escolas passarão a ter “nomes patrióticos, não de comunistas”, e monumentos celebrarão os “verdadeiros heróis americanos”. Sua visão sobre como solucionar o crescente problema dos dependentes químicos e moradores de rua é simples: remoção forçada para cidades-tendas fora do perímetro urbano. E reintrodução imediata da perversa abordagem e revista policial conhecida como stop-and-frisk, que sempre resultou em perversa filtragem racial.

Aclimatar a nação ao pulso autoritário, expondo cedo e com frequência suas intenções, é a estratégia central do candidato.

— Vou erradicar os comunistas, marxistas, fascistas e radicais de esquerda que vivem como vermes dentro de nossas fronteiras — prometeu em comício no mês passado.

O Trump 2.0 não é o mesmo que concorreu em 2016 com gaiatice — ele mesmo não acreditava que venceria. Tinha apenas duas ideias fixas: acabar com a imigração e apoiar o protecionismo. Hoje, sustenta David A. Graham, da Atlantic, o desejo de vingança contra seus opositores políticos, contra o cerco jurídico que se estreita e a humilhação da derrota eclipsam todo o resto.

Em essência, são apenas duas as instituições que poderão barrar sua insensatez autoritária, se eleito: o Departamento de Justiça e o comando das Forças Armadas. Trump 2.0 perdeu o direito ao benefício da dúvida — ele é, de fato, candidato a usurpador do poder por eleição. Sem brincadeirinha.

 

Um comentário:

ADEMAR AMANCIO disse...

Perigo à vista.