O Globo
Todo candidato eleito num sistema democrático
sabe que será canibalizado por diversas ondas de poderosos agentes
sociopolíticos
Em tempos diluvianos, éramos animais. O
primeiro canibalismo veio com a “alma” ou com a consciência, facultada pela
linguagem articulada, que separou o vivido do explicado. Ela engendrou o cisma
entre bicho e humanidade nas suas variadas encarnações no “bicho-homem”
engendrado entre nós.
Um segundo canibalismo veio alimentado pelo
controle do fogo, que, como mostrou Lévi-Strauss, criou a oposição complementar
entre o cru (natureza) e o cozido (pacto social ou cultura). Dualidade que
consolidou a diferença entre a animalidade governada por instintos inseparáveis
de seus portadores do bicho-homem administrado por regras, mandamentos, códigos
e crenças. Pelo que os antropólogos chamam de “cultura”, que, como as múltiplas
línguas, é imposta, varia de grupo a grupo e chega de fora para dentro.
Tal é o desconjuntado conjunto do “bicho-homem” — expressão que, no Brasil, muito sabiamente, caracteriza a condição humana, pois não são poucas as situações em que o bicho canibaliza o homem, como testemunha a História.
Não custa muito imaginar que nossas crenças
se transformem em dogmas e determinismos legitimadores de abomináveis opressões
e preconceitos que levam à morte, à destruição e à guerra. O bicho-homem morre,
mas sua voz — centrada naquilo que lhe foi dado a acreditar — fica como prova
dessa combinação intrigante e insolúvel.
O bicho faz perna com o homem. O homem
canibaliza o bicho, mas é eventualmente por ele canibalizado.
Bicho faz sistema com o cru e o homem com o
cozido. O fogo e a palavra são os mediadores dessa humanização, mas nem sempre,
como experimentamos recorrentemente, o cozido é saboroso. Ou melhor: quem foi
eleito como cozido é cru e, pior, rejeitava as canibalizações habituais.
Eleição faz perna com rebelião e revolução.
Felizmente, a violência do autocanibalismo negativo é sublimada pela
democracia.
Todo candidato representa uma alternativa a
quem governa. Mesmo não sendo dogmático, ele configura opções e, assim, propõe
uma transformação do statu quo. Com isso, fica à esquerda e desloca até mesmo
os mais notórios populistas-esquerdistas que se transformam em conservadores ou
reacionários.
O espírito da democracia tem o pendor de
desarticular e relativizar extremos, pois ela se concretiza canibalizando o cru
que vira cozido e o cozido, que, reitero, pode se transformar em cru. Num certo
sentido, o canibalismo democrático nivela ou desilude os que pensam ter balas
de prata e soluções finais para os problemas. Daí a dificuldade de praticar
democracia em estruturas sociais de fundo histórico aristocrático, escravista —
obviamente racista — e elitista. Em sistemas fundados nas hierarquias do “sabe
quem está falando?” e do “esse eu conheço!”...
Todo candidato eleito num sistema democrático
sabe que será canibalizado por diversas ondas de poderosos agentes
sociopolíticos.
Em primeiro lugar, chega o cargo com seus
encargos práticos, seu fascínio litúrgico e seu potencial de mando e negociação
que imediatamente equaciona limites e fronteiras.
Em seguida, chega o partido, com suas
demandas e cobranças. E, finalmente, chega o enxame dos elos pessoais. As
dívidas da reciprocidade, do “dar para receber”, quase sempre divergente dos
projetos políticos mais racionais e impessoais. Com isso e a seu lado, há o
peso do parentesco, do compadrio e das amizades para as quais nada pode ser
negado.
Todos esses canibalismos da “casa” se igualam
às racionalidades da “rua”. Elas praticamente anulam o universo público em que
vive a política.
Essa constelação de canibalismos — do rebelde
e revolucionário ao negociador malandro e populista que muda para não mudar —
produz uma gramática histórica cuja ambiguidade é irritante. Nela, cada passo
adiante promove um retorno. Não é o fim do mundo, porque o novo é inevitável,
mas requer muita paciência dos canibais, que, afinal, são velhos amigos e
eleitores.
P.S.: Veremos como a “maluquice” de
Javier Milei reage à “fritura” canibal portenha.
*Antropólogo
Nenhum comentário:
Postar um comentário