O Estado de S. Paulo
Declaração do presidente jogou água na
fervura e poderá abrir caminho à necessária agenda de controle de gastos
públicos de Haddad
Ontem, o presidente Luiz Inácio Lula da Silva
disse: “Aqui, nesse governo, a gente aplica o dinheiro que é necessário. A
gente gasta com educação e saúde, naquilo que é necessário. Mas a gente não
joga dinheiro fora. Responsabilidade fiscal não é uma palavra, é um compromisso
desse governo desde 2003. E a gente manterá à risca”.
Karl Marx inicia O 18 Brumário de Luís
Bonaparte (1852) assim: “Hegel observa em uma de suas obras que todos os fatos
e personagens de grande importância na história do mundo ocorrem, por assim
dizer, duas vezes. E esqueceu-se de acrescentar: a primeira vez como tragédia,
a segunda como farsa”.
Ele escreve que “os homens conjuram ansiosamente em seu auxílio os espíritos do passado, tomando-lhes emprestado os nomes, os gritos de guerra e as roupagens (...)”. É curioso como as obras clássicas ajudam a compreender e a interpretar a conjuntura, sobretudo quando tudo parece turvo.
Na coluna passada, defendi que o presidente
da República bebesse da fonte do Lula de 2002, que publicou a Carta ao povo
brasileiro e mudou o próprio programa de governo para explicitar seu
compromisso com a responsabilidade fiscal. A declaração acima transcrita,
depois de uma série de falas complicadas, é um alento.
Sozinha, não bastará, mas é um importante
movimento para, potencialmente, neutralizar a confusão das últimas semanas.
Tudo dependerá dos próximos passos. A dívida pública é alta e crescente. O
déficit deste ano será menor, mas estamos ainda distantes de gerar um saldo
fiscal suficiente para reequilibrar a dívida como proporção do PIB.
Não é que Lula queira repetir-se,
simplesmente, já que o contexto é outro e as condições não são as mesmas. Os
adversários, naquela época, eram os tucanos, com quem havia diálogo e de quem o
primeiro governo Lula apreendeu muita coisa. Repetiu, com sucesso, a política
de superávits primários e derrubou a dívida/PIB.
De todo modo, me parece apropriado que ele se
inspire no êxito de 2002, quando estava prestes a vencer as eleições gerais e
era questionado sobre suas intenções na economia. O teatro é muito próprio da
atividade política. Ele é necessário, vale dizer, para animar o espírito do
povo na direção desejada pelo governo, manter coesa a base e, não secundário,
para acalmar, quando preciso, os ânimos dos mercados.
Esse acerto de Lula, após ouvir o seu
ministro da Fazenda, Fernando Haddad, é meio caminho andado. Lula errou ao
atacar a gestão de Roberto Campos Neto no Banco Central. Está prestes a indicar
seu sucessor, de modo que a bagunça provocada pelos questionamentos à política
monetária, aos juros, à política cambial e à lei da independência era
dispensável. O momento é de pacificação, não de fustigações aqui e acolá. A
declaração de ontem foi tempestiva justamente por isso. Jogou água na fervura e
poderá abrir caminho à necessária agenda de controle de gastos públicos de
Haddad.
A alta expressiva do dólar e os juros
elevados projetados pelo mercado para diferentes prazos são termômetros
importantes. O cenário externo, as decisões de política econômica, a dinâmica
da atividade produtiva, as expectativas e tantos fatores afetam o dólar e o
juro. A taxa de câmbio chegou a R$ 5,70 por dólar, anteontem, impulsionada pela
manutenção dos juros americanos, que demoram a cair, por um certo pessimismo
com os mercados emergentes e pelas questões fiscais internas.
Nesse último caso, as declarações do
presidente Lula azedaram o caldo um pouco mais. Afinal, o governo tem ou não
tem compromisso com as metas fiscais e o arcabouço de regras para as contas
públicas aprovadas por ele mesmo no ano passado? As falas sobre Banco Central,
juros e câmbio também não foram felizes, porque turbinaram as percepções de
risco, elevando o prêmio requerido nos títulos públicos por aqueles que têm
poupança para financiar o déficit público. O discurso de ontem foi uma resposta
acertada depois disso tudo.
Lula é um sábio camaleão. Muda rápido, quando
precisa, e fareja os problemas. É curioso como a taxa de câmbio, talvez tanto
quanto a própria inflação, trabalha feito um sinal de alerta para o mundo da
política. “Se o câmbio está na Lua, é porque pode haver algo de podre no reino
da Dinamarca”, deve ter pensado o presidente.
A desconfiança de parte considerável do
mercado e da opinião pública demandava um posicionamento. Afirmar que o governo
vai “manter à risca” o compromisso com a responsabilidade fiscal é a boa
“repetição da história”, até segunda ordem, mutatis mutandis, da boa estratégia
de 2002. Haddad precisa desse respaldo permanente para fazer cumprir o novo
arcabouço fiscal e para conter a evolução da despesa pública.
Um teste importante será a decisão do chamado
contingenciamento (corte de despesas não obrigatórias para cumprir a meta de
resultado fiscal). Mudar a meta seria péssimo. Que a história se repita, mas
como verdade. Sem responsabilidade fiscal, a chance de o País crescer e voltar
a gerar renda e riqueza à altura dos anseios do povo brasileiro seria atirada
pela janela. •
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