sexta-feira, 12 de setembro de 2008

A Câmara municipal mais disputada


Maria Cristina Fernandes
DEU NO VALOR ECONÔMICO


A propaganda eleitoral no pára-brisa dos carros estacionados em seu entorno prenuncia a disputa iminente. O ex-ator global posa abraçado a um gato e a um cachorro com o Pão-de-Açúcar ao fundo. A pastora Márcia pede voto "por uma questão de caráter". O vereador de Rio das Pedras, reduto miliciano, anuncia-se como "nordestino, valente e trabalhador". A filha do ex-governador, hoje inelegível, estampa, cintilante, um jipe prata que divide com camelôs a calçada que dá acesso à escadaria do Palácio Pedro Ernesto, o prédio da arquitetura eclética dos anos 20 que abriga a Câmara Municipal do Rio de Janeiro.

No plenário esvaziado, a ordem do dia lista 35 projetos de lei e pareceres, desde a obrigatoriedade da venda em separado das tampas de caixa d"água até a criação de guarda-volumes em estabelecimentos bancários cujas portas tenham trava eletrônica.

O festival de slogans continua nos 50 gabinetes dos dez andares de corredores estreitos no prédio anexo. "Estamos juntos, amarrados e misturados", anuncia o adesivo à porta do gabinete do vereador do DEM. No gabinete de salas espremidas ao lado, a vereadora do PV, Aspásia Camargo, queixa-se da imprensa - "Passa 95% do tempo ridicularizando os que já são ridículos e agrava o descrédito do eleitor".

No Rio, concorre contra essa descrença, uma das mais acirradas eleições legislativas. Em nenhuma das seis maiores capitais do país, o mandato de vereador é mais disputado do que na Câmara carioca. São 24,4 candidatos por vaga, cinco a mais que em São Paulo. Apenas Belo Horizonte se lhe avizinha. Em Porto Alegre, a politizada capital do orçamento participativo, são 13 postulantes por vaga, o que configura uma disputa mais oligarquizada que Fortaleza (20), Salvador (19) ou Recife (17).

Socióloga, professora da Fundação Getúlio Vargas, ex-presidente do Ipea, a vereadora vê o descrédito estampado na zona sul onde colheu, majoritariamente, os 15.300 votos que lhe deram, em 2004, a antepenúltima posição na Casa. Na campanha, tem cruzado uma cidade partida para chegar aos efervescentes colégios eleitorais da periferia - "São duas cidades, uma emburrada, de luto, que não quer ouvir falar de campanha, e outra em festa onde as pessoas querem aderir a quem se dispuser a fazer algo por elas".

Mobilização na periferia e apatia na zona sul

Reconhece que a deterioração da Câmara, que frustra o eleitorado, antecede a expansão das milícias e se deu, em grande parte, pela concorrência com o Executivo. Calcula que 40% dos vereadores comandam centros sociais que concorrem, sob o beneplácito das verbas oficiais, com os serviços prestados pelas prefeituras. "Para que vão fiscalizar os hospitais municipais, se podem se ocupar em carrear verbas para seus próprios serviços?"

E diz que a saída para o Rio sitiado não sairá do eleitorado descrente e amedrontado da zona sul, mas da periferia hoje acossada pelas milícias - "Basta olhar para esses jovens protegidos e mimados de nossa elite e confrontá-los com a exuberância destemida dessa juventude emergente da periferia".

Cita a Rocinha como exemplo de que, junto com essa nova classe média, também emerge o desejo de civilidade. No início do seu mandato recebeu a denúncia de que um quiosque, que funcionava irregularmente na principal calçada da Rocinha, havia se transformado da noite para o dia de um feriado, com o apoio dos prepostos do poder municipal, numa construção de alvenaria - "Houve muitos protestos porque milhares de pessoas vivendo num espaço exíguo querem, pelo menos, ordem para tocar sua vida". Desses protestos, fortaleceu-se a pressão por um plano urbanístico para a favela, que acabou sendo o embrião do PAC da Rocinha, hoje em execução.

Não vê como o poder público será capaz de confrontar as milícias sem disputar o mercado que as sustentam. Diz que o achaque miliciano é posterior à difusão, nessas comunidades, de serviços clandestinos de água, luz, telefone e TV a cabo - "Eles definem que só podem pagar R$ 10, e é isso que pagam". Foi assim que as concessionárias de energia passaram a negociar tarifas mais módicas em muitas comunidades.

A informalidade ficará sempre cativa de grupos paralelos de poder, diz Aspásia, enquanto a capital da burocracia lenta e corrupta não se der conta de que é preciso acabar com a indústrias dos alvarás e licenças e das tarifas escorchantes. É assim, aposta, que se canaliza a capacidade empreendedora dessas comunidades e a periferia insubordinada pode passar de ameaça à salvação da cidade sitiada.

Maria Cristina Fernandes é editora de Política. Escreve às sextas-feiras

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